Uma ideia recorrente que procura simplificar a prática científica — e a ciência, como um todo — é tratá-la como uma prática racional e objetiva, com método bem definido, cujos resultados nunca tendem para nada que não seja a aproximação máxima da verdade (quando não da “única” verdade que pode existir). Com essa visão, o conhecimento científico, além de ser a criação humana mais elevada, alcançaria o status de superioridade diante de outros tipos de conhecimento e, por isso, deve ser sempre seguido à risca e a sociedade, guiada apenas por quem, de fato, pratica a ciência. Afinal, cientistas seriam, em consequência desta visão de racionalidade absoluta da ciência, tão neutros quanto possível. E a neutralidade, claro, seria quase como um rito de elevação da alma humana que poucos seriam capazes de alcançar.
Essa visão de neutralidade do conhecimento científico ignora premissas básicas: não existe um único método científico — ao contrário do que muitos livros didáticos ainda insistem em ensinar —, tampouco ele pode ser considerado o caminho para a verdade absoluta e imutável; cientistas e sociedade se influenciam mutualmente e a tecnocracia [1] é um modelo ideológico como qualquer outro — portanto, longe de ser estritamente racional. E se a neutralidade científica fosse uma possiblidade concreta, provavelmente não teríamos práticas como o colonialismo científico, que leva fósseis para países desenvolvidos [2] e impede pesquisas sobre doenças genéticas, como vimos na Cesta Científica #8 [3]. Portanto, a racionalidade e objetividade não são características fundamentais para ser um cientista. Longe disso: há muito espaço para sentimentos e motivações, como vimos no caso das pesquisas sobre as causas da Síndrome da Morte Súbita Infantil [4] e nos argumentos apresentados pelo livro “Rivalidades produtivas: disputas e brigas que impulsionaram a ciência e a tecnologia”.
Escrito por Michael White e publicado no Brasil pela Editora Record com tradução de Aluizio Pestana da Costa, o livro apresenta em suas 543 páginas um extenso relato sobre oito disputas no campo científico e no campo tecnológico que resultaram, além dos evidentes progressos e reconhecimento aos seus autores, em histórias de trapaças, reviravoltas e disputas pessoais que permearam desde a invenção do cálculo diferencial até a cibernética.
As rivalidades estão divididas em oito capítulos cujos títulos remetem as disputas e aos seus personagens centrais. Pode-se argumentar que as histórias apresentadas por White são de conhecimento público: Newton e Leibniz são reconhecidos como inventores do cálculo diferencial, Tesla e Edison já tiveram a história de sua disputa contada em filme estrelado por Benedict Cumberbatch e participação de Tom Holland [5] e a corrida espacial é ensinada na escola em diversas épocas do ensino básico. Contudo, o “Rivalidades produtivas” acrescenta e esclarece pontos que nem sempre são de conhecimento daqueles que sabem que as rivalidades aconteceram. Isso por si só já valeria como um motivo para a leitura da obra. Mas White consegue ir além: ele apresenta as possíveis causas e consequências que levaram cientistas e inventores a se enfrentarem e criarem inimizades pessoais que ultrapassaram o campo da discussão técnica.
Michael White recorre aos escritos dos próprios cientistas e inventores e a fontes históricas para apresentar a história que envolve cada rivalidade, bem como os contextos que sevem como pano de fundo. Por isso, prepare-se para uma leitura extensa e detalhada. Isso é longe de ser um problema, claro, mas nos tempos de informação em quinze segundos acompanhada de dancinhas e de música de gosto duvidoso, é importante saber que ler o “Rivalidades” será uma atividade a ser feita com tempo para degustar as histórias e os personagens que tão somente apresentam aquilo que realmente são: humanos, demasiadamente humanos.
Como humanos, todos os cientistas envolvidos nas rivalidades cometeram erros de julgamento em alguma medida e tiveram que superar adversidades próprias e aquelas criadas por terceiros. E se há heroísmo na ciência — ou em qualquer outra atividade humana — certamente ele passa por superar tais adversidades. Talvez esse seja um dos legados da leitura do “Rivalidades produtivas”: a desmistificação de que a prática científica ao longo da história sempre foi pautada pela estrita racionalidade e neutralidade que sempre busca o melhor em tudo e em todos. Pelo contrário: ela também é envolvida em dramas humanos que não desaparecem com um ou mais diplomas universitários.
Isso fica evidenciado especialmente no capítulo dedicado a determinação da estrutura do DNA — que hoje sabemos ter um formato em dupla-hélice. Watson e Crick, Rosalind Franklin e Maurice Wilkins fizeram parte de uma disputa que envolveu erros grosseiros, espionagem, disputa por reconhecimento da comunidade acadêmica e decisões polêmicas que não cessaram com a publicação do artigo relatando a descoberta da estrutura da molécula em 1953 [5].
Os dramas humanos, as incertezas, as disputas que envolvem a produção científica não diminuem em nada a importância da ciência e de seus conhecimentos [6]. Ao contrário: nos mostram que a complexidade do conhecimento científico vai além da compreensão sobre conceitos e relações matemáticas e que poder compreender isso é poder compreender sobre nós mesmos. White coloca o seu ponto de vista a medida em que conclui pontos ou contextos importantes da história e isso é positivo para uma obra tão vasta: permite até que o leitor discorde do autor, ainda que debatendo com as páginas impressas.
O texto do “Rivalidades produtivas” pode ser adaptado para o uso em sala de aula, sobretudo no ensino médio. Todas as disputas relatadas na obra estão relacionadas com o aprendizado de ciências da natureza em sala de aula, de modo que sugerir a leitura antes de discutir os temas pode ser um excelente ponto de partida para apresentar a prática científica, as motivações dos cientistas e as consequências do desenvolvimento científico.
O livro “Rivalidades produtivas: disputas e brigas que impulsionaram a ciência e a tecnologia”, de autoria de Michael White e tradução de Aluizio Pestana da Costa está disponível para compra no site da Editora Record e nos principais marketplaces da internet brasileira.
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[1] Sobre o ideal de tecnocracia e seus (óbvios?) problemas: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tecnocracia
[2] Como discutido aqui: https://ccult.org/descolonizacao-de-fosseis-brasileiros-o-caso-ubirajara-e-algumas-notas-de-cultura-cientifica
[3] A Cesta Científica é a newsletter de conteúdos sobre ciência do ccult.org: https://ccult.org/cesta-cientifica-8
[4] Saiba mais sobre a síndrome aqui: https://ccult.org/motivacao-cientistas-e-uma-possivel-causa-para-a-smsi
[5] O artigo original com o relato da estrutura do DNA pode ser acessado nos “Artigos Científicos Históricos”: https://ccult.org/artigos-cientificos-historicos
[6] Um dos maiores valores da ciência está em sua capacidade de buscar a autocorreção, como vimos aqui: https://ccult.org/por-que-confiar-na-ciencia e aqui: https://ccult.org/retratacao-de-artigos-cientificos-e-a-autoprotecao-da-ciencia
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