Motivação, cientistas e uma possível causa para a SMSI

Cientistas são seres humanos como eu ou você (ou como o programador que fez o algoritmo de seu software de leitura). Pode parecer uma informação óbvia, mas quase sempre o óbvio precisa ser dito, sobretudo quando a visão estereotipada do cientista [1] — aquela que vê o cientista como um homem, solitário, leitor e observador de tubos de ensaio e rodeado por átomos — tem fortes indícios de sua presença no imaginário dos alunos do ensino básico [2].

E como seres humanos, cientistas são dotados de sentimentos, de emoções, de reações que nem sempre são racionais ou embasadas apenas na análise de dados e dos fatos. Não é que ter emoções seja algo problemático para um cientista a ponto de que ele ou ela deva evitar ao máximo ter qualquer tipo de emoção (aliás, esse ideal de ausência de sentimentos por parte de cientistas que os fariam ser melhores para a condução de cargos executivos e qualquer outra coisa na vida é uma consequência bem ruim do ideal de neutralidade da ciência e do cientista. Esqueça: cientista neutro não existe).  Na verdade, cientistas das mais diferentes áreas devem lidar com toda sorte de sentimentos pessoais durante a realização de qualquer pesquisa científica. Afinal, além de tudo que envolve fazer ciência, cientistas tem família, assistem a jogos de futebol [3], desfilam no carnaval [4].

Cientistas também sofrem perdas que marcam suas vidas para sempre. Existem casos mais conhecidos, como o de Marie Curie que ficou viúva após seu marido, Pierre Curie, ser vítima de atropelamento no começo do século XX, em Paris. Na mesma França, cerca de dois séculos antes da tragédia com o casal Curie, André-Marie Ampere (cujo sobrenome batiza a unidade de medida para a corrente elétrica) foi sepultado sob o epitáfio “tandem felix”, algo como: “finalmente feliz”: sua vida foi marcada por uma sucessão de tragédias pessoais que foram pesadas o suficiente para serem gravadas em sua lápide.

Tragédias pessoais também podem servir de motivação para cientistas e suas pesquisas. A pesquisadora Carmel Therese Harrington, chefe do Grupo de Pesquisa sobre SMSI e Apneia do Sono do The Children’s Hospital at Westmead, na Austrália, dedicou 29 anos de sua vida a pesquisar sobre as causas da SMSI ou síndrome da morte súbita infantil [5]. A síndrome está associada a quase 40% das mortes súbitas de recém-nascidos nos Estados Unidos [6] e a sua ação era completamente desconhecida. Infelizmente, um dos bebês que morreram em decorrência da SMSI foi o filho de Harrington, Damien, em 1991.

Carmel Harrigton e seu filho Damien, que morreu subitamente em 1991. A SMSI foi a possível causa e a motivação do trabalho de Harrington que traz esperança para reduzir as mortes súbitas em recém-nascidos. | Reprodução: Daily Mail.

“Meu filho, Damien, morreu de repente e inesperadamente uma noite. Levei cerca de dois anos antes que eu pudesse realmente respirar novamente, e nesse ponto, eu pensei que realmente queria descobrir por que ele morreu.

A equipe chefiada por Carrington [7] conseguiu identificar que um biomarcador [8] — a enzima butirilcolinesterase (BChE), cujo papel é atuar como um dos componentes da via de excitação do cérebro — tinha uma atividade significativamente menor em bebês que morreram subitamente do que em bebês saudáveis. Esse passo é importante por dois motivos: dá um caminho para que outros cientistas busquem uma forma de identificar a presença da BChE no organismo do bebê e alternativas para tratar essa condição, ao mesmo tempo que tira um peso imenso de milhões de famílias: apesar de todas as medidas preventivas contra a síndrome da morte súbita infantil, muitas crianças acabaram morrendo. Sem explicação, mães e pais se sentiram responsáveis pela morte de seus filhos — que, agora, se sabe que se deveu a algo que ninguém poderia controlar.

Não foi uma pergunta pura e simples que trouxe a pesquisa para o biomarcador da SMSI. Foi um acontecimento trágico que motivou o caminho da pesquisa que trouxe resultados tão importantes para milhões de famílias em todo o mundo. Apesar da dor, o sentimento é de esperança. Honestamente, eu prefiro uma ciência assim.

Embora uma possível causa para a SMSI tenha sido encontrada, isso não significa que as medidas de prevenção (como manter o bebê sempre virado com a barriga para cima, não superaquecê-los e manter brinquedos fora do berço enquanto as crianças dormem) continuam válidas e sendo altamente recomendadas.

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[1] https://jornal.usp.br/universidade/qual-e-a-aparencia-de-um-cientista-projeto-da-usp-quer-desmistificar-estereotipos/
[2] Um interessante sobre essa questão pode ser conferido no endereço: http://abrapecnet.org.br/enpec/xii-enpec/anais/resumos/1/R1786-1.pdf
[3] Miguel Nicolelis, um dos maiores cientistas brasileiros da história, conta nesse episódio (em português) o que sofreu para acompanhar os jogos do Palmeiras enquanto estudava fora do Brasil: https://www.youtube.com/watch?v=kWE1nAQiASY
[4] Vide Richard Feynman no Brasil.
[5] Sobre a SMSI, vale ler: https://www.wikiwand.com/pt/S%C3%ADndrome_de_morte_s%C3%BAbita_infantil
[6] O Data Sus não apresenta dados específicos a SMSI no Brasil, embora apresente os dados de morte na infância por causas desconhecidas/indefinidas, como pode ser visto aqui: http://svs.aids.gov.br/dantps/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/mortalidade/infantil-e-fetal/
[7] Harrington conta mais detalhes sobre o seu sentimento de culpa e a sua dor pela morte súbita de seu filho nessa entrevista para o Daily Mail (em inglês): https://www.dailymail.co.uk/femail/real-life/article-10795503/Dr-Carmel-Harrington-makes-world-breakthrough-identifying-babys-vulnerability-SIDS.html
[8] O artigo de Harrington (HARRINGTON, HAFID, WATERS, 2013) pode ser acessado pelo endereço: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35533499

Imagem destacada por Getty Images/Additude

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