Quando eu era criança, tinha pensamentos bem peculiares sobre o mundo. Por exemplo, eu achava que todos os pontos de iluminação pública eram acionados e desligados por um único funcionário público – que sempre imaginava como sendo um senhor de longos cabelos brancos e de camisa social -, que tinha a sua disposição um enorme número de interruptores numa parede qualquer da prefeitura. Minha imaginação infantil não tinha espaço para o efeito fotoelétrico e sensores que facilmente identificam as condições de luminosidade.
Fazia sentido pensar daquele jeito. O meu mundo era simples: aciono o interruptor e uma lâmpada acende. Meus pais, meus professores, qualquer pessoa que eu via repetia o mesmo movimento. Logo, era fácil concluir que toda lâmpada acesa obedecia a esse mesmo mecanismo de funcionamento.
Esticando um pouco mais essa lembrança para associar aos dias atuais: medicamentos ineficazes contra a covid-19 que continuam a ser propagados por aí como solução para a pandemia que já vitimou quase seiscentas mil pessoas no território brasileiro. A covid-19 é uma doença séria, que tem uma taxa de letalidade perto de 1,5% . Isso significa que, em um grupo pequeno, é esperado que poucas ou nenhuma pessoa precise de internação ou morra em decorrência da infecção pelo vírus (e é claro que o cenário muda em uma população muito maior, em escala nacional ou planetária; pense em como seria manter em funcionamento leitos de UTI para 1% da população!)
Por isso é tão comum ter pessoas minimizando a doença. Além das campanhas de desinformação financiadas até pelo governo brasileiro, o viés de confirmação aparece tal qual quando acreditava que a realidade do mundo era aquela que eu enxergava sobre as lâmpadas de iluminação pública. Se em um grupo familiar poucas pessoas têm casos graves da doença, logo concluo que a doença não é grave. Ou seja: o viés de confirmação é uma tendência de interpretação de dados ou de informações que validam as crenças ou as hipóteses de alguém sobre um acontecimento, um fato, um fenômeno.
Em pesquisas científicas, o viés de confirmação é evitado a todo custo (métodos de pesquisa podem envolver testes duplo-cegos, em que nem o pesquisador sabe se sua cobaia está em contato com o princípio ativo em estudo ou com placebo), pois cientistas não são avessos a crenças nem sentimentos. Ter um viés deste tipo contamina a pesquisa de tal modo que pode chegar a invalidá-la perante a comunidade acadêmica.
E este mesmo cuidado com a interpretação dos resultados tem que ser tomado com a amostra a ser analisada. Se você pesquisa sobre o campeonato mundial de futebol em 1951 (sim, aquele mesmo) com o objetivo de entender a percepção dos torcedores em geral, não pode selecionar apenas uma torcida ou a proporção incorreta de torcedores de sua amostra que representam a população em estudo.
Por isso é tão temerário enviar links de formulários de pesquisa para grupos de Facebook ou por e-mail para conhecidos. Não se sabe se aquela parcela que responderá ao seu questionário corresponde a uma parcela significativa da população, de modo que a sua compreensão da realidade pode ser enviesada.
Ou seja: você pensou em evitar o viés de confirmação, pensou em como não reforçar suas crenças na interpretação dos resultados, mas não teve cuidado em selecionar quem participaria de sua pesquisa, e com isso, corre o mesmo risco de análise. Desejava pesquisar sobre a percepção dos professores de ciências sobre o ensino durante a pandemia, mas acabou recebendo informações de professores de literatura, de professores aposentados e até de quem não exerce a profissão. Qualquer dado obtido e analisado passa a ser problemático.
Claro que o uso massivo de redes sociais pode nos trazer a tendência (ou o reforço) de pensamento de que estamos num grupo homogêneo, coeso e que representa aquela população da qual fazemos parte (esse é um dos segredos do sucesso das redes sociais: manter perfis de mesma tendência de pensamento numa espécie de “bolha”). Além disso, informações circulam numa velocidade surpreendente. E Sarah Frank, uma adolescente dos Estados Unidos, parece ter contribuído decisivamente para entendermos o tamanho do risco de seleção de amostra de uma pesquisa.
Em seu perfil no TikTok, Sarah postou um vídeo de pouco mais de 40 segundos que recebeu mais de quatro milhões de visualizações desde quando foi publicado em julho deste ano. No vídeo, ela mostrava como “ganhar dinheiro por diferentes períodos” participando de pesquisas científicas.
Na internet, existem diversas plataformas de gerenciamento que permitem que pesquisadores encontrem voluntários para as suas pesquisas. Já listamos algumas delas neste link [pesquisa]. Algumas delas pagam um valor em dinheiro para todas as pessoas que são selecionadas. Veja: no mundo ideal, a sua inscrição é apenas o início de uma série de critérios antes de você efetivamente participar da pesquisa justamente para evitar os dois vieses que citei anteriormente.
Mas no caso das plataformas sugeridas por Sarah em seu vídeo no TikTok, a seleção falhou imensamente. Os números amostrais tiveram um salto gigantesco da noite para o dia, mas numa proporção que não era a esperada. Por exemplo, em algumas delas, apenas 3% dos participantes eram do sexo masculino – e claro que uma proporção dessas não corresponde à realidade demográfica nos Estados Unidos. Com isso, pesquisas inteiras tiveram que ser interrompidas – 4600, de acordo com o The Verge.
Por isso amiguinhos, não basta conhecer e reduzir as tendências de interpretação dos resultados de uma pesquisa. É essencial escolher quem vai fazer parte de sua pesquisa e como essa participação vai acontecer.
Referências:
- The Verge (em inglês): https://www.theverge.com/2021/9/24/22688278/tiktok-science-study-survey-prolific
- Sobre a taxa de letalidade (Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais): https://coronavirus.saude.mg.gov.br/blog/81-taxa-de-mortalidade-da-covid-19
Imagem destacada por Survey Bias.
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