É normal que muitas dúvidas apareçam quando uma pandemia surge impões certas mudanças de hábitos na vida de todo mundo. No caso da covid-19, a generalização não é exagerada: dos 206 países ou territórios soberanos reconhecidos pela ONU, apenas 15 não tem casos confirmados da doença . Em número absolutos, a doença atingiu mais de um milhão e oitocentos mil casos desde o início das notificações, como é possível verificar neste painel interativo da Organização Mundial da Saúde (WHO, ou World Health Organization).
E talvez por estarmos acostumados com a profunda relação que o conhecimento científico tem em nossas vidas, esperamos que a ciência apareça com alguma solução para este problema. Para muitos, essa solução aparentemente depende apenas de algum insight, uma ideia brilhante de um cientista com o seu jaleco e seu cabelo bagunçado, sentado em frente a tubos de ensaio em um laboratório qualquer cheio de máquinas ultramodernas. Por isso é compreensível que muitas pessoas acreditem na “solução cloroquina” para a covid-19.
O estudo do microbiologista francês Didier Raoult caiu como uma bomba no meio científico quando foi publicado em março de 2020. No estudo, Raoult e outros autores argumentavam que ao utilizar cloroquina e a hidroxocloroquina em pacientes diagnosticados com a covid-19, muitos deles apresentaram melhoras significativas . A substância – originalmente pesquisada para tratar malária e, em associação com outros medicamentos, a lúpus e a artrite reumatoide – começou a ser pesquisada ainda em janeiro deste ano por iniciativa de médicos chineses. A aposta era em suas propriedades anti-inflamatórias já conhecidas e que poderiam ajudar os pulmões de um paciente a se recuperar dos danos causados pela infecção pelo novo coronavírus. Nos testes in vitro, ou seja, testes em que células específicas são testadas em ambiente laboratorial, longe de reproduzir o complexo organismo humano, percebeu-se que, de alguma forma, a cloroquina inibe a entrada do novo coronavírus nas células e os estágios posteriores de infecção pelo vírus.
Só que dos testes in vitro para a aplicação em massa do medicamento, há um grande caminho a ser trilhado, como discutido neste texto. Não é por ideologia, mas sim, por segurança: é preciso atestar em quais condições utilizar a cloroquina é seguro para o organismo humano. Por mais que se queira salvar vidas, não podemos correr o risco de piorar a situação que já é complicada por si só.
E o que os pães com bolor que a ver com isso?
É que eles podem ser utilizados para ilustrar como a ciência utiliza certos critérios para comparar a eficiência de determinada ação, seja lavar as mãos, aprovar o uso de um novo fertilizante ou testar a segurança e a capacidade de uma substância, como a cloroquina, realmente atuar como inibidor do Sars-Cov-2 (o nome completo do novo coronavírus) nas células humanas.
O elemento chave para qualquer cientista é a curiosidade. É o desejo de encontrar respostas válidas para todo o tipo de pergunta. Você pode perguntar sobre o que quiser para o conhecimento científico: ele não possui verdades absolutas. E como todo conhecimento científico nasce de uma pergunta, você poderia se perguntar, por exemplo: “lavar as mãos é eficiente para matar bactérias e fungos que contaminam os alimentos?” ou coisas mais simples, como: “o que aconteceria com alimentos se eu os tocasse com as mãos sujas?”. Esses dois exemplos são simples, mas suficientes para entendermos como a dinâmica deste experimento pode se aplicar ao caso dos testes de medicamentos.
Depois de ter uma pergunta que desejamos responder, podemos pensar em algumas respostas. De fato, todos nós deveríamos saber a importância de se lavar as mãos. Mas em algumas situações, isso não é possível (lembre-se que cerca de 48% dos brasileiros não tem acesso ao saneamento básico) ou é simplesmente ignorado. Ainda assim, podemos pensar, por exemplo, que ao lavar as mãos, eliminamos grande parte de fungos e de bactérias que podem ser prejudiciais ao nosso organismo – ou estragar uma fatia de pão. Esse tipo de pensamento, que responde à pergunta que levantamos, é chamado de hipótese. Em geral, quando pudermos testar essa hipótese, estamos diante de um conhecimento científico (veja mais sobre isso aqui).
Agora estamos no estágio em que precisamos testar a nossa resposta. Para isso, podemos fazer como esse experimento realizado pelo professor Jaralee Annice Metcalf com crianças de uma escola dos Estados Unidos: tocamos de formas diferentes em fatias de pão de forma e verificamos o que acontece em comparação com uma fatia intocada depois que todas elas são colocadas em sacos para armazenamento de alimentos:
- Uma fatia intocada é selecionada e armazenada. Essa será a fatia de controle do experimento.
- Uma fatia é tocada por mãos de crianças que lavaram as mãos com água e sabão;
- Outra fatia é tocada pelas mãos de crianças que a higienizaram as mãos com álcool em gel;
- Uma fatia é tocada pelas mãos das crianças que não as lavaram e;
- Uma fatia foi esfregada no teclado dos Chromebooks, modelo de notebooks desenvolvido pela Google e utilizado pelos alunos.

Com o passar do tempo, pode-se observar como as fatias tocadas pelas mãos ou que tiveram contato com os Chromebooks ficaram em comparação com a fatia que não foi tocada (a fatia de controle). Do mesmo modo, testamos a eficácia de uma determinada substância – por exemplo, a cloroquina – utilizando o mesmo mecanismo: um grupo recebe a substância e outro não e comparamos os resultados obtidos para os dois grupos. Se um tem diferenças significativas em relação a outro, é sinal de que a substância tem alguma coisa a ver com isso.





Neste caso, as mãos higienizadas quase não contaminaram as fatias de pão em comparação com aquelas que foram tocadas pelas mãos que não foram lavadas ou higienizadas com álcool em gel. O que indica que limpar as mãos com água e sabão realmente é eficiente contra fungos, bactérias e para desativar o novo coronavírus, apresentando resultados melhores do que a simples higienização com álcool em gel, por exemplo.
Os resultados, isto é, as imagens das fatias de pão bem como a interpretação para o que foi observado pode ser publicada em uma página do Facebook. Mas os cientistas, ao publicarem os seus resultados, utilizam os artigos científicos, que são textos técnicos disponibilizados em periódicos ou revistas científicas, que lidas e debatidas por outros cientistas. Quanto maior a credibilidade que a revista possui, maior a chance dos estudos nela publicados serem lidos, debatidos e chegarem até o público em geral. Foi isso o que ocorreu com o estudo de Raoult – que agora passará por uma revisão por pares e corre o risco até de ser retificado, isto é, corrigido ou até mesmo retirado da revista em que foi publicado.
Mais do que esperar uma solução, é preciso entender que as respostas apresentadas pelo conhecimento científico virão após pesquisas e testes e mais testes. Entender como eles se realizam é uma das chaves para se combater o obscurantismo e o uso político do uso indiscriminado da cloroquina e do hidroxicloroquina. Até o momento, a cloroquina não apresentou resultados significativos para que o seu uso seja recomendado. Ao contrário: já existem estudos que foram suspensos após a piora dos pacientes decorrentes dos efeitos colaterais no organismo humano.
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Para saber mais:
- Painel com dados em tempo real e projeções sobre os casos de covid-19 elaborado pela Johns Hopkins University: https://coronavirus.jhu.edu/map.html;
- Experimento “How cleans are your hands” (em inglês): https://www.mottchildren.org/posts/camp-little-victors/dirty-hands
- Disfosfato de cloroquina e seus efeitos no organismo: https://www.far.fiocruz.br/wp-content/uploads/2017/02/Cloroquina-ProfSaude.pdf
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F. C. Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.
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