Conhecimento, vida universitária e defesa da ciência: um convite ao pensamento para o ingresso no ensino superior

Eu leciono física para o ensino básico — especialmente para o ensino médio — desde 2010. Já passei por algumas instituições de ensino. Todas tinham que tinham os seus objetivos de formação para seus alunos: algumas defendiam uma formação geral, sem especificar o objetivo de ingresso ao ensino superior, enquanto outras defendiam o ensino exclusivo para o ingresso nas universidades públicas, especialmente em cursos de maior concorrência e tradição entre a elite econômica (medicina, direito e engenharia). Geralmente são essas escolas que investem pesadamente em publicidade para divulgar aos quatro ventos que seus “métodos” e “sistemas” são os melhores que existem.

Mas pouco se pensa a respeito do que é a vida universitária em si. Não falo apenas das angústias com cópias de textos, empréstimos de livros, dificuldades de adaptação com o currículo, professores e até com a nova vida. Esses são problemas que também devem ser debatidos, contudo, nem sempre é possível fazê-lo de forma mais abrangente, já que cada pessoa terá uma especificidade em cada campo quando chegar à universidade. Alguns mudam de cidade, outros descobrem dificuldades que antes nunca se manifestaram. Mas há um tópico que creio ser mais profundo, urgente e que cai sobre todos aqueles que ingressam no ensino superior: fazer ciência.

Talvez seja esse o seu principal objetivo ao ingressar em uma universidade. Produzir ciência. Eu sei, eu sei: você pensa que vai ingressar em um curso superior para obter seu diploma, exercer a sua profissão, ter dinheiro. Isso até pode ser uma das consequências de sua formação, mas ela só realmente será plena, concreta, científica — com o devido perdão pelo tom cientificista — se em algum momento você produzir conhecimento com aquilo que você recebe.

Ter essa visão de objetivo muda drasticamente a sua percepção sobre o seu papel no ensino superior. Você deixa de ser alguém que estuda para alguém que faz alguma coisa, qualquer coisa, com aquilo que está estudando. De repente, você se torna agente do conhecimento: estuda, reflete, cria, transmite. O que é uma postura muito diferente de quem encara a universidade apenas como um meio para um fim que busca a estabilidade financeira como produto final de seus estudos.

E claro que esta visão que coloca o universitário como alguém que também deveria ser produtor do conhecimento científico vai soar como romântica ou, quem sabe, utópica. Eu poderia citar o historiador uruguaio Eduardo Galeano e a sua famosa frase sobre a utopia, mas traçarei alguns pontos que já estão por aí, espalhados nos cursos superiores de todo o Brasil, antes de falar do que nos serve a utopia.

O primeiro ponto é tão famosa monografia de fim de curso. Tida como um terror para quem pretende concluir o curso, ela difere em objetivos e formas, mas em essência, pretende avaliar a profundidade da formação científica que você desenvolveu ao longo do seu curso. O problema, claro, é que essa concepção só é apresentada, discutida (e exigida) nos momentos finais do curso. Passam-se uns dois terços de sua formação em que, em grande parte, você recebeu instrução formal/conceitual sobre diversos tópicos — que evidentemente são importantes para a sua formação acadêmica e profissional.

Em muitos cursos, é natural que o seu contato com a produção científica seja apenas a elaboração de sua monografia. Isso é uma questão muito séria: você lidará constantemente com o conhecimento científico e esse contato será absolutamente passivo. Quero dizer, pouco espaço lhe será dado para a participação em algum evento científico — ainda que como ouvinte — ou na produção de um artigo científico ou na elaboração de um texto de divulgação científica. Na maioria das vezes, isso acontece propositalmente: a ideia é que você tenha o seu diploma, a sua formação teórica. Mas aí pergunto: como você terá uma compreensão abrangente da ciência apenas ouvindo falar sobre ela? Seria como conhecer o gosto salgado da água do mar ouvindo o que os outros tem a dizer sobre ele!

Assim, se você entra em um curso universitário que envolve a produção de um texto de conclusão de curso, saiba que ele refletirá o que você conhece sobre ciência. A toda ciência, como já diria Bachelard, nasce de uma pergunta. O que você deseja responder, a curiosidade que você deseja sanar, o problema ainda não solucionado em uma área do conhecimento: essas são os objetivos que você se permite traçar e desenvolver a partir de seu ingresso na faculdade.

Aqui entra outro ponto sobre a formação científica no ensino superior. Durante o curso, é comum surgir a oportunidade de se fazer a famosa iniciação científica — IC, para os íntimos -, que geralmente possui vínculo com algum programa ou projeto de pesquisa. Se surgir a oportunidade, faça uma IC. Não pelo valor financeiro — as bolsas atuais têm valor médio de R$ 350, ou seja, menos de cem dólares na cotação de outubro de 2021 — mas pela oportunidade de aprendizado que isso poderá te trazer. Ver como certos conhecimentos são aplicados na prática, como eles são desenvolvidos e como os mecanismos da ciência funcionam farão uma diferença enorme em sua formação acadêmica, pessoal e profissional — nem que seja para entender por que é necessária a adoção de protocolos de pesquisa antes de sair propagando por aí sobre a eficácia de uma substância ou medicamento no tratamento de doenças.

Uma consequência direta de se perceber como agente do conhecimento científico é entender por que se defendem investimentos massivos e constantes na pesquisa científica. Pesquisas de base ou aplicadas, em qualquer área do conhecimento, desenvolvem o conhecimento científico sob diversos aspectos. Se já seria inaceitável ter um valor irrisório de bolsas de pesquisa com exigências sobre-humanas sobre estudantes, imagina ter que produzir ciência sem qualquer apoio! Perceber o valor da ciência para a humanidade é de suma importância para entender o mundo que o cerca. Não existe oportunidade maior para perceber e defender a ciência do que se perceber como agente do conhecimento científico mesmo antes de receber o seu diploma.

Por fim, mas não menos importante: se ver como produtor de ciência trará novas perspectivas de mundo. Não me refiro especificamente a oportunidades de trabalho, mas sim, de sua visão pessoal sobre o mundo. Não que entender o funcionamento da ciência lhe trará maior felicidade ou maior chance de sucesso pessoal; na verdade, ter uma perspectiva científica permitirá a você ter novos mecanismos de reflexão sobre o mundo. Isso servirá para ver toda a beleza de um céu noturno e, quem sabe, refutar com sabedoria as notícias falsas que inundam nossa rotina o tempo todo.

Defender a ciência passa por conhecer seus mecanismos, seu funcionamento, seus problemas e suas limitações. Porque assim defenderemos conscientemente uma prática que é efetiva para explicar muitos aspectos de nossa realidade, além de compreendermos a profundidade da famosa frase de Elbert Hubbard:

Um diploma universitário não te encurta as orelhas: só as esconde. — Elbert Hubbard (1856–1915)

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A frase de Eduardo Galeano sobre a utopia é esta: “a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

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