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VAR e a descoberta de outras galáxias

Há mais de quatrocentos anos, Galileu Galilei iniciou uma revolução sobre o aquilo que sabemos sobre o nosso lugar no universo, sobretudo sob o ponto de vista ocidental. Ao melhorar o sistema de lentes de sua luneta e ter a feliz ideia de utilizá-la como instrumento para observar o céu, Galileu deu um passo irrevogável para o progresso científico. Para ser justo, apontar a luneta foi o primeiro passo; o seguinte, foi descrever suas observações e os passos que as antecederam com uma linguagem tão simples que qualquer pessoa com um equipamento adequado conseguiria realizar as mesmas observações que o matemático italiano, verificando por si mesmo a correção daquilo que Galileu discutia e concluía a partir de seus estudos. Esse foi, talvez, um dos maiores legados da obra de Galileu: a noção inicial de um método científico [1] que é aperfeiçoado até hoje [2].

Mas Galileu não foi o primeiro a observar o céu, seja para descrevê-lo, seja para compreendê-lo. Os povos da antiguidade, como os babilônios, já observavam o céu e extraiam dele informações para o seu calendário ou para rituais religiosos. Na Grécia Antiga, foram feitas as primeiras proposições para o nosso lugar no universo: fomos colocados no centro dele, com tudo orbitando ao nosso redor. Fazia sentido: um observador fixo na superfície da Terra vê o céu e os objetos celestes se movimentarem sobre nossas cabeças como se estivessem girando ao nosso redor. Foi com base nessa ideia que Ptolomeu publica o seu “Almagesto”, tratado matemático que ratifica o sistema geocêntrico e que foi uma das bases sólidas para que a Inquisição perseguisse quem discordasse dela durante a Idade Média.

Durante a Idade Média, aliás, o desenvolvimento científico na Europa — centro das maiores influências culturais do mundo até então — ficou severamente restrito por conta das amarras promovidas pelo clérigo, especialmente na Itália e na Espanha [3]. Cientistas de outros lugares do mundo, como do oriente médio, começam a ganhar destaque e a influenciar permanentemente importantes campos da matemática, da música, da filosofia, da medicina e da astronomia.

Os catálogos estrelares árabes tiveram grande repercussão no mundo. Um deles, elaborado pelo astrônomo persa Abd-al-Rahman Al-Sufi, que o nomeou de “Livro de Estrelas Fixas”. Dentre os objetos celestes catalogados pelo astrônomo estava uma pequena nuvem que também fora catalogada, muitos anos depois, por outros astrônomos — incluindo o francês Charles Messier, autor de um dos mais completos e conhecidos catálogos estrelares da história humana e o astrônomo inglês Edmund Halley, o mesmo que batiza o cometa mais famoso de nosso sistema solar. O objeto? Uma pequena nuvem, que Messier atribuiu como a sua trigésima primeira entrada (ou Messier 31, simplesmente M31 [4]). Era a nebulosa de andrômeda.

Da mesma forma que para os gregos fazia todo sentido que a Terra fosse o centro do universo (e que o próprio universo se resumisse aos planetas e outros objetos visíveis a olho nu), fazia sentido pensar que a pequena nuvem era uma nebulosa. Nebulosas eram objetos conhecidos pelo homem [5], sendo a mais famosa delas batizada com o nome do líder da primeira expedição a dar uma volta na Terra com a sua nau. Fernão de Magalhães realizou este feito entre 1519 e 1522. Foi durante este período que o navegador avistou as nuvens que mais tarde receberam o seu nome.

A nebulosa de andrômeda poderia continuar como uma nebulosa não fosse o desenvolvimento tecnológico. Como avanço da espectroscopia e da consequente compreensão das estrelas [6], as primeiras diferenças entre a composição de nebulosas foram identificadas: as nebulosas ou aglomerados estrelares, que hoje sabemos serem galáxias, tinham um espectro contínuo, bem diferente das chamadas nebulosas gasosas, cujo espectro continha linhas bem definidas. Até a primeira década de 1900, mais de quinze mil nebulosas haviam sido catalogadas e descritas.

O grande problema era determinar se esses objetos pertenciam ou não a nossa galáxia. Era consenso desde a antiguidade que a faixa brilhante visível no céu noturno era uma região formada por outras estrelas. Culturas antigas já conheciam essa faixa [7] e cientistas como Galileu já haviam observado a grande quantidade de estrelas contida na Via Láctea. Contudo, até a década de 1920, não se sabia se existiam outras galáxias por aí.

Foi em meio a esse contexto que o astrônomo estadunidense Edwin Powell Hubble fez as observações que mudaram a percepção da humanidade sobre o seu lugar no universo. A partir de um telescópio de 200 polegadas (ou quase 4,3 metros de diâmetro) de abertura, Hubble observou uma estrela cefeída — estrela de grande magnitude cujo brilho é variável — na então nebulosa de andrômeda. Naquela época, já eram conhecidas formas matemáticas de se calcular com boa precisão a distância de estrelas cefeídas em relação a Terra. Com as observações e o cálculo de Hubble, foi possível determinar a distância da estrela — e, consequentemente, de andrômeda — em relação a Terra [8]. O resultado foi assustadoramente real: a estrela estava a pouco mais de 2,2 milhões de anos-luz (cada ano-luz equivale a pouco mais de nove trilhões de quilômetros!), enquanto o diâmetro de nossa galáxia equivale a pouco mais de cem mil anos-luz. Portanto, a nebulosa de andrômeda era na verdade outra galáxia que estava fora dos limites da Via Láctea, isto é, andrômeda é uma galáxia em nossa vizinhança!

Anotações sobre as imagens captadas por Hubble que determinaram a descoberta de uma nova galáxia.

O “VAR!”, neste caso, se refere justamente a estrela de brilho variável que Hubble utilizou para determinar a distância de andrômeda em relação a nossa galáxia. Um var muito mais preciso do que o video assistant referee utilizado no futebol, principalmente levando em conta a distância entre os objetos observados.

De quebra, Hubble ainda determinou que havia um afastamento relativo entre as galáxias (e com isso, mostrou que a concepção de universo estático proposta por Albert Einstein estava errada). E se elas se afastavam, é porque, em algum momento, estavam mais próximas. E se estivessem tão próximas que formavam um único ponto?

Daí para frente, novas teorias de formação do universo surgiram. Mais do que pensar em como tudo começou, eu perco mesmo o fôlego pensando sobre a imagem registrada anos mais tarde pelo telescópio espacial Hubble, conhecida como “hubble ultra deep field” (ou campo profundo de Hubble). Cada ponto brilhante corresponde a uma galáxia de nosso grupo local, com mais ou menos 10000 galáxias. Cada galáxia com bilhões de estrelas, bilhões de planetas, cometas e luas…

Hubble Ultra Deep Field e as 10000 galáxias visualizadas na imagem | ESA

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[1] “Um método científico”, já que a ciência é feita a partir de vários métodos de pesquisa, que, como qualquer construção humana, está sujeito a modificações.
[2] Um exemplo atual é a discussão em torno da indicação de autoria em artigos científicos, deixando de ser nominal e passando a ser por atribuição.
[3] A perseguição era tão intensa que tivemos, talvez pela primeira vez na história, o crime de “tráfico de artigos científicos”. Trabalhos de Galileu, Copérnico e de outros grandes cientistas europeus tiveram que ser contrabandeados para outros países, como a Holanda, para serem publicados e difundidos para outros cientistas.
[4] As entradas do catálogo de Messier são antecedidas pela letra “M”. Atualmente, mais de cem objetos compõem o catálogo — e inspiram o nome da banda “M83”, cujo álbum “Hurry up, We’re Dreaming” é considerado pela crítica especializada como um dos melhores álbuns do século (tenho que admitir que concordo com os críticos).
[5] Embora fossem objetos conhecidos, a sua constituição só começou a ser, de fato, compreendida a partir do século XVII.
[6] Leia mais aqui: https://ccult.org/o-arco-iris-e-a-composicao-das-estrelas
[7] Saiba mais sobre o céu noturno como elemento cultural aqui: https://ccult.org/o-ceu-noturno-como-elemento-cultural-europeus-aborigenes-e-indios-latino-americanos-e-as-suas-constelacoes/
[8] Para mais informações sobre este cálculo, consulte o link: http://www.if.ufrgs.br/~mgp/notas/ast_extragal/Galaxias_morfologia.pdf

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F. C. Gonçalves

Flávio “F. C.” Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.

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