Observar o céu noturno é provavelmente uma das atividades mais antigas praticadas pelo ser humano. Desde os mais remotos tempos até os nossos dias, enxergar a imensidão de estrelas e de planetas brilhando sobre as nossas cabeças suscitam questões sobre a nossa existência, o nosso propósito e o nosso lugar nesse imenso universo.
Mas a observação do céu não nos apresentou apenas novas questões filosóficas. A contagem de tempo, as grandes navegações, o plantio e a colheita na agricultura, entre outras atividades, aproveitaram o conhecimento oriundo da Astronomia que impulsionaram as mudanças culturais e o desenvolvimento da sociedade ocidental tal qual conhecemos atualmente. E se hoje nos grandes centros urbanos quase não se enxergam as estrelas por conta da poluição visual ou se não nos encantamos mais com o surgimento de Vênus logo ao por ou ao nascer do Sol (é o primeiro ponto brilhante a surgir no céu logo após o começo da noite), as principais sociedades antigas tinham a observação do céu noturno como um culto, um reverência aos deuses praticada por seus membros.
Como seria São Paulo 🇧🇷 se não houvesse poluição luminosa.
How São Paulo #Brazil would look like without light pollution.
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— Astronomia USP Brasil (@AstroUSP) 6 de janeiro de 2018
Perceber como as principais sociedades demarcavam o céu noturno nos mostra quais eram os elementos mais importantes de determinada cultura.
Acredita-se que foi na Mesopotâmia onde surgiram as primeiras representações de elementos do cotidiano no céu noturno, há pelo menos quatro mil anos, surgindo justamente da observação do movimento do Sol, da Lua e estrelas ao longo do ano — e que culminou na descoberta da relação entre a posição destes objetos celestes com as estações do ano. Destas observações também incorreram duas percepções que permaneceram vivas por mais de 3000 anos (embora ainda se perceba resquícios delas por aí): a noção de que a Terra era o centro do universo, com o Sol e os outros planetas orbitando ao nosso redor e a ideia da influência a posição dos astros na vida dos humanos no planeta, isto é, a astrologia. Astrologia e a Astronomia caminharam durante muito tempo juntas, com a separação definitiva — e o abandono da astrologia como ciência — por volta do século XVII.
A cultura relacionada com a representação do céu em constelações espalhou-se pela Europa e no século II, coube a Claudio Ptolomeu a primeira sistematização e catalogação da primeira carta de constelações produzida. Sua obra, Almagesto, foi um marco para a Astronomia. Em treze volumes, Ptolomeu relacionou 1022 estrelas de 48 constelações, sendo 12 zodiacais — são aquelas demarcam a trajetória do Sol ao longo do ano — , 21 do hemisfério norte e 15 pertencentes ao hemisfério sul — incluindo as quatro principais de cruzeiro do sul (ou simplesmente “crux australis”, como foi inicialmente concebida, quando ainda era classificada dentro da constelação de centauro).
Daí surgiu a classificação atual das constelações com nomes que por vezes parecem difíceis de serem associados as figuras que representam. É bem aqui que entra a questão cultural: as constelações que deram origem ao catálogo de Ptolomeu representavam objetos, animais ou elementos mitológicos numa espécie de “ligue os pontos”, que formavam figuras que nem sempre eram representações fidedignas, mas que pertenciam, em geral, a elementos da cultura europeia. O catálogo de Ptolomeu foi o ponto inicial das expansões e reclassificações feitas por Tycho Brahe (1546–1601), Johannes Bayer (1592–1625) e o abade francês Nicolas-Louis Lacaille (1713–1762), este último o pai das 88 constelações conhecidas na cultura ocidental.

Mas outras civilizações também tinham a sua maneira de observar o céu e o a posição das estrelas e das constelações que por elas eram formadas.

Os aborígenes provavelmente são descendentes dos primeiros homens modernos a migrarem da África . A despeito da grande diversidade de tradições que as tribos tinham, em comum, havia o uso da observação do céu noturno para o culto e para a determinação das estações do ano e as constelações eram determinadas pela combinação do posicionamento das estrelas com a Via Láctea, além de serem exímios navegadores, se orientando apenas com a observação das constelações.

No continente americano, as civilizações pré-colombianas (astecas, incas e maias) utilizavam a observação astronômica para determinar as épocas propícias para o plantio e para a colheita, adoração aos deuses e medição do tempo. A civilização maia conseguiu, a partir de suas observações, determinar o ciclo de Vênus, a duração de um ano terrestre e o ciclo lunar com boa precisão e até a ocorrência dos eclipses.

Do mesmo modo que outras civilizações, os índios brasileiros (tribos tupinambás e tupis-guaranis) demarcavam as constelações com elementos de sua cultura, mas o faziam de uma maneira muito interessante: formando desenhos no céu não só utilizando as estrelas, mas também qualquer mancha visível. E ao contrário das constelações europeias, as aqui catalogadas formavam figuras mais fáceis de serem identificadas e relacionadas com a fauna e a flora do país. Outra característica interessante dessas constelações é que grande parte delas ficam situadas na região da Via Láctea — conhecida pelos índios por “caminho da anta”— facilmente identificável no céu noturno, visível durante todo o ano.


Duas constelações demarcavam importantes momentos para os hábitos de vida indígenas: a ema (a imagem no topo deste texto) e o “homem velho”. O aparecimento da ema indica, para os povos indígenas que habitavam o sul do Brasil, o início do inverno. Portanto, época de clima desfavorável e contra-indicada para o nascimento de crianças. Em contra partida, o aparecimento do homem velho anunciava o início do verão no sul.

Evidentemente, com a grande diversidade de tribos no Brasil antes de 1500, outras constelações eram obtidas em diferentes regiões, embora o significado religioso e cultural permanecesse o mesmo.

Ao todo, apenas da tribo tupi-guarani, foram catalogadas mais de 100 constelações. Esse é um trabalho difícil, já que a cultura indígena sofreu ao longo dos anos, diversas mudanças por conta da interação e da invasão cultural. Os dados de observações antropológicas europeias em nossas tribos contribuem de alguma forma para compreender os conhecimentos obtidos pelos índios a partir da observação do céu noturno. Conhecimentos esses que podem ser aplicados em nosso cotidiano, como no caso do combate ao mosquito aedes-aegipty, transmissor da dengue, zika, chikungunya e febre amarela. É o que o documentário brasileiro “Cuaracy Ra’Angaba — O céu Tupi Guarani”, lançado em 2013, conta.
O conhecimento dos povos antigos sobre a Astronomia deve sempre ser lembrado. Atualmente, é a IAU — União Internacional de Astronomia — quem responde pelo batismo, inclusão ou remoção de objetos celestes dos catálogos científicos. Em dezembro, a entidade deu nome a 86 estrelas de diversas constelações com nomes ligados a pontos históricos e as cultura maias, chinesas, aborígenes, entre outras . Mais do que batizar, a inclusão desses nomes promove para a eternidade as contribuições de diversos povos no conhecimento do céu.
E por mais que nosso conhecimento sobre as constelações (e sobre a natureza, como um todo) seja muito mais avançado, sempre gosto de lembrar de uma famosa frase de Feynman sobre poetas e a beleza do conhecimento:
Os poetas reclamam que a ciência retira a beleza das estrelas. Mas eu posso vê-las de noite no deserto, e senti-las. Vejo menos ou mais?
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Para saber mais:
- Nomeando estrelas — União Internacional de Astronomia (2017): https://www.iau.org/public/themes/naming_stars/#table
- O céu como guia de conhecimentos e rituais indígenas. Texto de Patricia Mariuzzo (2012): http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000400023
- Astronomia aborígene australiana — Wikipedia: https://es.wikipedia.org/wiki/Astronom%C3%ADa_aborigen_australiana
- Aborígenes: como entender sua ciência ancestral. Texto de Roy Norris: https://www.epochtimes.com.br/aborigenes-como-entender-ciencia-ancestral/#.WlEiy6inHIU
- Mitos e Estações no céu Tupi-Guarani. Texto de Germano Afonso: http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/mitos_e_estacees_no_ceu_tupi-guarani.html
- As constelações indígenas brasileiras. Texto de Germano Afonso: http://www.telescopiosnaescola.pro.br/indigenas.pdf
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F. C. Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.
[…] são detalhadas e os infográficos sobre as constelações adotadas por outras civilizações (já falamos sobre os aspectos culturais das constelações neste texto aqui) são […]