InícioSTEM e a carta de Neil deGrasse Tyson

STEM e a carta de Neil deGrasse Tyson

É recorrente, dentro da perspectiva histórica do ensino de ciências, o aparecimento de programas de ensino. Esses programas, como se espera, refletem as necessidades e expectativas de diversos grupos sociais para a formação dos alunos que mais tarde chegariam à vida adulta e tentariam dar conta de suas responsabilidades individuais e coletivas. Ou dos anseios políticos e econômicos de sua época. Ou de tudo isso ao mesmo tempo.

Se pensarmos num recorte pós 1944, com o fim da segunda guerra mundial e a ascensão da guerra-fria, verificaremos, por exemplo, o aumento da importância que os conhecimentos científicos nas áreas de física, química e matemática ganham espaço no ensino de ciências das nações desenvolvidas e, um pouco mais tarde, nas nações em desenvolvimento. Isso não foi ao acaso, claro: para que o desenvolvimento científico e tecnológico continuasse à pleno vapor para servir aos interesses das nações, era necessário formar pessoas aptas a lidar com esse tipo de conhecimento.

E se nos anos 1960 tivemos a formação de uma elite intelectual científica, nas décadas seguintes, tivemos a mudança para a formação em ciências amplificada para cada vez mais pessoas; o ensino de ciências deixava de ser uma atividade exclusiva para os mais aptos — que eram aqueles que teriam, mais tarde, as suas formações acadêmicas voltadas para a área de ciências da natureza — e passa a ser, gradativamente, uma necessidade frente aos desafios que o avanço tecnológico trazia. Nos anos 1970, surgem tecnologias — como o walkman, disquete de 8 polegadas, fornos de micro-ondas, entre outras — que acabam exigindo, em alguma medida, conhecimentos sobre ciências mais profundos do que aqueles exigidos há poucos anos.

A complexidade teórica e técnica que a sociedade se metia ia avançando, de modo que os problemas decorrentes do trabalho científico logo precisaram fazer parte do aprendizado em ciências. Afinal, a poluição, a destruição da camada de ozônio, entre outras tantas, afligiam a todos, de modo que instruir sobre a ciência, seu funcionamento e suas implicações não era apenas um luxo eventual: era uma questão de sobrevivência das futuras gerações que sentiam os efeitos e necessitavam de voz ativa, de participação nas decisões sobre o uso dos conhecimentos científicos sobre a sua vida. É neste contexto que surge o movimento CTS – Ciência, Tecnologia e Sociedade – nos anos 1980 e que abriu os caminhos para um ensino de ciências voltado a questões humanas e que discuta a ciência de forma mais profunda, como atividade humana e com implicações sociais de suas atividades.

E o que o STEM tem a ver com isso?

Os movimentos de ensino de ciências que rapidamente foram apresentados acima têm uma coisa em comum: refletem as necessidades da sociedade frente ao conhecimento científico e suas relações com a política, economia e com a sociedade como um todo. Isso, inclui, evidentemente, a mudança em como esse ensino acontece: deixando de ser algo totalmente passivo, com alunos que apenas ouvem e decoram o que lhes é repassado, para alunos que discutem e refletem (pelo menos, a priori) sobre seus conhecimentos e questões do cotidiano de uma forma abrangente e profunda, já que a ciência em si também é colocada como parte integrante do processo de aprendizagem dos alunos.

Agora, imagine o nível de complexidade e de profundidade que o conhecimento científico tem em nossa sociedade. Pense na rapidez do desenvolvimento científico e tecnológico e como esse desenvolvimento exige reflexão sobre ele; afinal, ao mesmo tempo em que podemos nos comunicar instantaneamente com pessoas de qualquer parte do mundo, estamos sujeitos ao problema da vigilância e da constante coleta de dados; e, do mesmo jeito que existem aplicativos e programas para quase tudo, é preciso ter quem desenvolva esse tipo de solução.

A proposta STEM — acrônimo para “Science, Tecnology, Engineering and Mathematics” ou algo como “Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática” — reflete, portanto, a atual necessidade para a formação de nossos alunos frente ao que a sociedade necessita — e, claro, o que a escola deixa de oferecer nesse sentido. A ideia central, ainda que não seja possível definir exatamente o que a STEM se propõe, é desenvolver habilidades e competências voltadas as questões da modernidade, intercalando os conhecimentos das quatro áreas STEM (como crítica muito válida por sinal, o STEM pouco inclui discussões relacionadas a outras áreas fora do dito “núcleo duro” da ciência — como sociologia, história e linguagem — o que estimulou a ideia de um movimento STEAM, com a inclusão de “Arts” no processo de ensino e de aprendizagem relacionado à proposta.

E é importante destacar: a STEM não é uma metodologia ativa de aprendizagem.

Elementos de metodologias ativas podem ser inseridos durante as aulas que levam em conta a proposta — por exemplo, em atividades investigativas em grupo que levam em conta aspectos do trabalho científico, como o argumento, levantamento de dados, determinação de soluções, etc. Contudo, a STEM não é, por si só, um método que impõe a atividade ativa do aluno em tempo integral, mas sim, uma concepção de quais pontos o ensino de ciências poderia desenvolver e aprofundar.

Apesar de ainda em desenvolvimento, o STEM/STEAM tem muito potencial como mecanismo de desenvolvimento conceitual e atitudinal dos alunos frente ao conhecimento científico. A discussão sobre as práticas relacionadas com as propostas ganha cada vez mais adeptos — até Os Simpsons colocaram a STEM em um episódio em que Margie tenta convencer a população de Springfield a construir uma nova escola baseada justamente em STEM.

DeGrasse Tyson para o Brasil

Não só Os Simpsons trouxeram o STEM nos últimos tempos. A carta aberta para o Brasil escrita pelo astrofísico Neil deGrasse Tyson é bem incisiva nisso:

Os países que mais passam por dificuldades no mundo tendem a ser aqueles com baixos níveis de instrução e com ausência de STEM em sua cultura. Você tem os recursos e o legado para liderar toda a América Latina, se não o mundo, no que um país do futuro deveria ser—no que um país do futuro deveria aspirar ser.

Se você abraçar e apoiar suas indústrias STEM—e o setor de tecnologia inteiro—então os sonhos dos alunos em toda a cadeia educacional não terão limites, conforme eles forem introduzidos num mundo em que foguetes são o que alimentam as ambições das pessoas que saem pela porta da caverna.

Tyson reforça justamente o papel que se espera para a perspectiva do ensino de ciência baseada em STEAM: que ela seja capaz de preparar os estudantes — e consequentemente, a sociedade — para os desafios e necessidades de nosso tempo, ao mesmo tempo em que faz com o que o conhecimento científico seja compreendido por um número cada vez maior de pessoas.

Se desejamos ser uma sociedade economicamente desenvolvida, precisamos nos desenvolver cientificamente. Não só com o aumento de cientistas e de investimentos em pesquisas, mas também, na profundidade da compreensão da ciência para a sociedade como um todo. E isso tem início na sala de aula. Compreender a ciência, desenvolver soluções tecnológicas, entender as implicações do conhecimento científico e utilizá-lo de modo a melhorar a qualidade de vida é, sem dúvida, uma das maiores demandas de nosso tempo. Por isso, é necessária uma urgente mudança de postura sobre a ciência e o ensino de ciências no Brasil. A perspectiva STEM/STEAM é um caminho válido. Não o único, claro. Mas precisamos dar o primeiro passo rumo ao futuro que deveria ter sido.

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Caro Brasil,

Das minhas muitas viagens à América do Sul, nunca tive a oportunidade de visitar você. A maioria delas teve como destino a cordilheira dos Andes, com o objetivo de observar o magnífico céu do hemisfério sul por meio de telescópios de alta tecnologia de um consórcio internacional. Mas, mesmo assim, tenho pensado em você com bastante frequência.

Como nativo dos Estados Unidos da América, sei em que costumamos pensar quando se trata de você. Não seguindo uma ordem específica, você possui a maior e mais importante floresta tropical do mundo. Você abriga o maior rio do mundo, que, a cada minuto que passa, escoa para o oceano Atlântico um volume de água que daria para encher um estádio de futebol. E, sim, nós sabíamos da existência de seu rio e de sua floresta tropical muito antes de a Amazon.com pegar o nome emprestado.

Quer mais? Não há quem não goste de castanha-do-brasil [a castanha-do-pará]. Na verdade, nos EUA, nós precisamos pagar pelo pacote “premium” para que elas venham incluídas em nossos mix de castanhas. E mesmo aqueles de nós que quase não acompanham futebol sabem da existência de seus times famosos, ficando na maior expectativa de ver você na final da Copa do Mundo a cada quatro anos. Também sabemos das suas praias deslumbrantes pelas músicas que as cantam — a “Garota de Ipanema” sendo uma delas. Sabemos de suas festas populares, principalmente o Carnaval, e tentamos imitar a intensidade e a alegria dessas celebrações — com dança e música — aqui no nosso hemisfério. Sabemos do seu café. E eu, particularmente, amo a sua bandeira. Há um pedaço do céu noturno estampado nela; mais de duas dezenas de estrelas retraçam constelações autênticas, incluindo o Cruzeiro do Sul.

Então, se você perguntasse a qualquer um de nós nos EUA o que vem à nossa cabeça quando seu nome é mencionado, normalmente selecionaríamos algo a partir dessa lista.

Você sabe do que nós não nos damos conta? Metade das vezes que embarcamos em voos domésticos, da American Airlines ou de outras companhias aéreas, viajamos num avião da Embraer. Tudo bem, o folheto com instruções de segurança traz impresso nele o nome Embraer. Nós podemos até achar Embraer escrito em letras miúdas em algum lugar da fuselagem. Mas quase nenhum de nós sabe que a aeronave é projetada e fabricada no Brasil. Você poderia alardear “Tecnologia Brasileira,” mas não o faz. Por que não? A Alemanha não hesita em se gabar da dela. Nada mais justo, claro. Todo mundo conhece a qualidade dos produtos fabricados na Alemanha, que, por sua vez, permeiam sua economia aeroespacial, a terceira maior do mundo.

Mas, espere. Um dos grandes pioneiros nos primórdios da aviação era brasileiro. Engenheiro brilhante e inventivo, altamente condecorado, Alberto Santos-Dumont liderou a transição mundial do transporte aéreo mais leve que o ar para o mais pesado que o ar. O valor de uma semente cultural como essa, plantada no nascimento de uma indústria, é incalculável. Um século depois, você se tornou líder em tecnologias de biocombustíveis — um passo fundamental em direção a uma economia verde onde nossa harmonia com a natureza vai determinar se iremos prosperar, sobreviver ou nos extinguir. Você também possui uma ambiciosa agência espacial, além de ser a sexta maior indústria aeroespacial do mundo. Na América Latina, você também é líder em Tecnologia da Informação. E num país famoso por sua agricultura, quase um terço de sua economia se apoia num setor produtivo impregnado de tecnologia.

Então talvez seja a hora de o mundo saber mais a respeito disso. Talvez seja a hora de os brasileiros saberem mais sobre isso. Talvez esteja mais do que na hora de você exibir produtos que declarem: “Fabricado no Brasil.”

Seja o que mais for, ou não, verdade no mundo, as economias de crescimento do futuro—mesmo as que possam ser puramente agrícolas — vão girar em torno dos investimentos feitos hoje em ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Numa democracia, esses investimentos fluem de um eleitorado letrado cientificamente, que elege líderes esclarecidos e que entendem o valor da educação, das pesquisas e das descobertas. Sem essas perspectivas, ainda estaríamos vivendo em cavernas, com alguns de nós resmungando: “Você não pode explorar o mundo exterior. Primeiro precisa resolver os problemas da nossa caverna.”

Para que ninguém se esqueça, o primeiro (e único) astronauta sul-americano foi um engenheiro aeronáutico brasileiro [Marcos Pontes]. E quando se deu o lançamento de sua missão? Em 2006, ano do centenário do primeiro avião bem-sucedido de Santos-Dumont. E o que ele levou para o espaço? Uma bandeira do Brasil e uma camisa da seleção brasileira de futebol.

Os países que mais passam por dificuldades no mundo tendem a ser aqueles com baixos níveis de instrução e com ausência de STEM em sua cultura. Você tem os recursos e o legado para liderar toda a América Latina, se não o mundo, no que um país do futuro deveria ser — no que um país do futuro deveria aspirar ser.

Se você abraçar e apoiar suas indústrias STEM — e o setor de tecnologia inteiro — então os sonhos dos alunos em toda a cadeia educacional não terão limites, conforme eles forem introduzidos num mundo em que foguetes são o que alimentam as ambições das pessoas que saem pela porta da caverna.

Atenciosamente,

Neil deGrasse Tyson

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F. C. Gonçalves

Flávio “F. C.” Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.

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