O astronauta enquanto ser humano

Os antigos navegadores que descobriram novas terras durante e rotas para o comércio internacional, como Vasco da Gama, Cristóvão Colombo e Pedro Alvares Cabral, ou que desenvolveram novas fronteiras com as expedições aos polos norte e sul, caso de Ernest H. Shackleton, Roald Amunsen e Robert Scott tiveram papeis equivalentes aos papeis que astronautas como Yuri Gagarin, Neil Armstrong, Chris Hadfield ou Scott Kelly tiveram ao longo de suas missões espaciais. Embora seja possível argumentar – e com razão – que os objetivos das missões ou navegações eram diferentes, é inegável que navegadores e astronautas tiveram de reunir capacidade técnica e intelectual, coragem e senso de exploração para realizarem seus trabalhos em ambientes hostis e sem muitas referências sobre as condições de vida ou de sobrevivência.

As epopeias de navegação dentro ou fora de nosso planeta são recheadas de heroísmos cujos feitos são relacionados a tomada de decisões ou de atos corajosos que fazem desses humanos seres especiais, distantes de nossa realidade. Mas como qualquer atividade humana, ser astronauta também é ter que sucumbir aos seus medos e ter que lidar com emoções dolorosas e assustadoras enquanto realiza sobrevive e realiza o seu trabalho – neste caso, com experimentos que precisam ser executados sob a máxima atenção e cuidados.

A ideia de que um astronauta é um ser humano como qualquer um de nós – e talvez por isso mesmo seus feitos são louváveis – já começa com o termo que o define (e não há nada mais humano do que a disputa por termos para definir algo). Os norte-americanos – e boa parte do ocidente – os chama de astronautas (astro + nauta, ou navegante as estrelas); os russos os conferem o título de cosmonauta (cosmos _ nauta, ou navegante do cosmos). Com o aumento dos países que enviam seres humanos para o espaço, agora temos os taikonautas (cujo termo deriva de tàikong ren, ou viajante do espaço) que viajam sob a cobertura do programa espacial chinês e possivelmente os chandronautas, os astronautas do programa espacial indiano que já enviaram uma nave não tripulada para a Lua, preparando o terreno para uma missão tripulada comandada pelos indianos em 2022.

Por isso, quando um caso como a da astronauta Anne McClain chega ao público, ele ganha tamanha repercussão. Afinal, como é que seres que são famosos por sua coragem e inteligência podem ter sido capazes de cometer crimes enquanto estavam em órbita? A resposta óbvia: é que são seres humanos, oras. A resposta longa: o comportamento humano no espaço pode sofrer modificações drásticas por conta da solidão e da carga de trabalho e de todo o ambiente espacial que a vivência em órbita possui. E é justamente isso que as agências especiais tentam simular durante os anos de treinamento para as missões ao espaço.

A vida numa caixinha isolada

A preparação para a rotina de alguns dias, semanas ou meses em órbita no planeta Terra envolve intensos treinamentos físicos e psicológicos que tentam simular a exaustão todas as situações que os astronautas podem passar enquanto estiverem em missão no espaço. Os treinamentos envolvem desde rotinas de exercícios físicos para o fortalecimento muscular e ósseo, já que em ambiente de microgravidade, há perda da capacidade de absorção de cálcio pelos ossos, além da atrofia dos músculos e da diminuição do ritmo cardíaco, que a longo prazo, pode ser prejudicial ao nosso organismo, especialmente na volta ao nosso planeta.

Um dos treinamentos é realizado sob um C-9, avião da NASA que faz o mesmo papel de um Airbus A300 de uma empresa dos Estados Unidos com um nome bem sugestivo: ZeroG. A bordo das aeronaves, os passageiros experimentam a sensação de ausência de peso à medida que o avião sobe e desce em trajetória parabólica. Essa condição de “flutuação” é constante no espaço e cria uma série de problemas: a desorientação espacial, já que o horizonte está a cada momento em um ponto diferente e isso torna muito difícil se orientar e organizar dentro deste ambiente em que a construção e manutenção de equipamentos é extremamente necessária não apenas para que a própria realização de experimentos possa ser possível, mas principalmente pela manutenção da vida humana no espaço possa se realizar com segurança.

O ZeroG parece ser um voo bem divertido, aliás:


Além da ambientação física, o ser humano tem que lidar com questões psicológicas importantes. Estar a centenas de quilômetros de altitude pode trazer uma sensação sufocante de isolamento e de sensação de insignificância da própria existência. Isso foi vivenciado, por exemplo, durante a missão Gemini IV, especialmente com o astronauta Ed White, nos anos 1970. White ficou tão eufórico com a caminhada espacial – a primeira realizada por um norte-americano – que não queria retornar para a nave. Isso deu origem a um dramático diálogo entre White, James McDivitt – o comandante da Gemini IV – e Gus Grissom, no controle de missão:

GRISSOM: Gemini IV, volte para dentro!
McDivitt: Eles querem que você volte para cá agora.
White: Voltar?
McDivitt: Voltar.
Grissom: Recebido e entendido. Faz um bom tempo que estamos tentando falar com você.
White: Ei, Cabo, me deixem [tirar] umas fotos.
McDivitt: Não, volte. Agora!
White: […] Ouça, eu sei que vocês tem pressa, mas já estou indo

Dois minutos se passaram e White não voltou, o que fez McDivitt implorar:

McDivitt: Venha agora, por favor!
WHITE: Na verdade, estou tentando tirar uma foto melhor
McDivitt: Não, venha agora.
White: Estou tentando tirar uma foto da nave.
McDivitt: Ed, venha para cá agora!

Pouco mais de um minuto se passou até que White fizesse a meia volta em direção a escotilha da nave, mas não sem antes dizer que “este é o momento mais triste de minha vida

Pelo menos White tinha alguma certeza de que se quisesse voltar, entraria de forma mais tranquila em sua nave do que o astronauta russo Alexei Leonov, primeiro ser humano a realizar uma caminhada espacial. A diferença de pressão entre o traje e o espaço fez o oxigênio ocupasse todo o traje, insuflando-o de modo a fazer com que ele ficasse rígido e com diâmetro maior do que a da abertura da nave; librar o oxigênio era arriscado por conta do aumento da temperatura interna e o risco de morte instantânea de Leonov e de até de seu companheiro de missão, Pavel Belyayev. Entretanto, todo o esforço foi recompensado e Leonov conseguiu entrar na nave – e ter uma viagem de reentrada emocionante, quando os cosmonautas descobriram que as manobras da capsula de reentrada deveriam ser feitas manualmente e havia pouco combustível disponível para isso.

Querida, perdi o experimento

Existem momentos em que experimentos são simplesmente perdidos pela vontade incontrolável dos astronautas de consumi-los. Por exemplo, um experimento para a comparação do crescimento de legumes – batatas e cebolas – em ambiente de microgravidade. A ideia era comparar o crescimento dos vegetais na superfície da Terra com o ambiente espacial durante uma das missões na ISS. Mas eles não contavam com a vontade dos astronautas, que comeram os legumes que deveriam observar durante a sua missão. Bem, as vezes o olho é maior do que a barriga – neste caso, maior do que a missão.

E quando o escândalo é na Terra?

A convivência entre os astronautas, ainda que constantemente monitorada, está sujeita a situações tão comuns a qualquer outro profissional. Em 2007, Lisa Nowak dirigiu quase 1600 quilômetros entre Orlando e Houston para tentar sequestrar e assassinar uma mulher que Lisa considerava rival pelo amor do astronauta Bill Oefelein. Um detalhe: Nowak era casada e tinha três filhos quando resolveu “dar um susto” na rival. Acabou presa e teve de pagar uma fiança de 25 mil dólares e ainda promoveu uma revisão de procedimentos no treinamento dos astronautas da Nasa.

Na realidade, astronautas amam, temem e vivem como qualquer outro ser humano. E é justamente isso que nos mostra o quão corajoso é se aventurar pelo espaço.

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