A ciência nos porões da ditadura militar no Brasil: a repressão e a perseguição aos cientistas nos anos de chumbo

A ditadura militar brasileira promoveu uma implacável perseguição à cientistas e pesquisadores considerados subversivos e “inimigos da nação”, causando exílios e demissões com a anuência de universidades.

As perseguições, prisões, torturas e desaparecimentos promovidos pela ditadura militar no Brasil em seus vinte e um anos de duração deixaram marcas profundas em diversos segmentos de nossa sociedade, inclusive no meio acadêmico. As histórias de censura e de perseguições a cientistas de todo o país — que eram acusados de serem comunistas e de conspirarem contra o país, mesmo sem qualquer evidência concreta dessas acusações — são uma demonstração arrepiante de como uma visão radical baseada na força, no medo e na mentira é perigosíssima para o futuro de qualquer nação.

E hoje, quando relembramos os exatos 55 anos da tomada do poder pelos militares naquele 31 de março de 1964, faz-se útil e necessário recordar como a ciência brasileira sofreu com todo o autoritarismo do regime militar.

Nos primeiros meses após a decretação da ditadura, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) fora invadida por militares do DOI-CODI que buscam subversivos e supostos membros de grupos terroristas e comunistas entre os alunos, docentes e funcionários. Embora o Destacamento de Operações de Informações dispusesse de informantes e de outros recursos para obter as informações que poderiam produzir uma condenação sumária à tortura ou ao desaparecimento, o órgão vinculado ao exército teve uma forcinha da USP. À época, a universidade criou o AESI — Assessoria Especial de Segurança e de Informação — que nada mais era do que um grupo de vigilância e de denúncia de suspeita de atividades contrárias ao regime. Desta forma, com a colaboração da própria instituição, quase cinquenta pessoas, entre docentes, alunos e funcionários foram mortos ou desapareceram sem qualquer explicação.

“Em muitos casos, a vigilância resultou em prisão, morte, desaparecimento, privação de trabalho, proibição de matrícula e interrupção de pesquisa acadêmica na instituição”

Outras instituições acadêmicas também foram alvo de invasões e de perseguições politicas contra seus professores e estudantes. A PUC de São Paulo, em setembro de 1977, foi invadida por mais de 500 homens da tropa de choque da polícia militar e agentes do Dops, que prenderam (não sem antes destruir materiais didáticos, livros e coagir professores e agredir a maior quantidade possível de pessoas) mais de 700 estudantes sob a mesma acusação de subversão.

Estudantes conduzidos durante invasão do prédio da PUC-SP | Créditos: cut.org.br

Mas a atuação da ditadura contra a comunidade acadêmica brasileira não ocorreu apenas sob truculência e a violência física. Livros didáticos foram proibidos e destruídos por serem considerados material de propagação da doutrina comunista (atual, não?); pesquisas consideradas como contrárias aos interesses da nação eram sumariamente interrompidas e os resultados, confiscados; docentes eram aposentados sumariamente e proibidos de exercerem a atividade de ensino e de pesquisa em qualquer instituição do território brasileiro, entre tantos outros ataques. Nascia o atraso científico e tecnológico.

Provavelmente um dos poucos programas de desenvolvimento científico e tecnológico realizado pelo regime militar estava na área nuclear, com a previsão de construção das usinas termonucleares, o que promoveria toda uma cadeia de produção relacionada ao combustível nuclear. Embora institutos de pesquisa científica tivessem sido implantados durante o regime, eles eram fruto de projetos anteriores. De todo modo, a ditadura tinha o seu entusiasmo pela ciência, desde que ela pudesse ser utilizada para promover os ideais de quem estava no poder. Ou seja: o desenvolvimento tecnológico e científico tinha de ser, de alguma forma, favorável ao regime. No geral, hão havia uma clara política de ciência e de tecnologia previstas pelo regime militar. Bem, uma ditadura não tem a obrigação de ser transparente ou de prestar contas para os cidadãos. O que era claro, no entanto, era a crescente censura contra pesquisadores brasileiros.

Mário Schenberg, foi um físico brasileiro nascido no Recife em 1914 e de grande renome internacional. Trabalhou na Europa e nos Estados Unidos junto a físicos como George Gamow (um dos idealizadores da teoria do big-bang), Enrico Fermi (físico italiano responsável pela descoberta do neutrino) e Wolfrang Pauli (a quem se dá o nome do princípio de exclusão em que dois elétrons não podem ter o mesmo nível quântico, isto é, não podem ter as mesmas características relacionadas a sua rotação). No início da década de 1960, Schenberg inaugurou o laboratório de física do estado sólido — ramo da física que estuda a estrutura atômica e a ligação entre os átomos na formação da matéria e que ainda é um dos pilares do desenvolvimento tecnológico — além de estar diretamente relacionado com a compra do primeiro computador da USP.

Mario Schenberg | Créditos: Universidade de São Paulo

Mas mesmo estando a frente de seu tempo, a ditadura militar não o poupou. Com a decretação do AI-5, em 1969, Schenberg fora preso por cinquenta dias — fato que gerou protestos duríssimos da comunidade científica internacional — e depois, aposentado compulsoriamente de suas funções de ensino e de pesquisa.

Ana Rosa Kucinski | Créditos: Memórias da Ditadura

Outro caso de perseguição a acadêmicos pela ditadura ocorreu contra a professora Ana Rosa Kucinski. Docente do instituto de química da USP, Kucinski fora denunciada pelo Aesi ao DOI-CODI. Meses mais tarde, foi demitida por “abandono de emprego”, embora a universidade estivesse ciente de sua prisão e de seu desaparecimento. A comissão da verdade da Universidade de São Paulo, criada em 2013 para analisar e documentar os casos de perseguições políticas, desaparecimentos, prisões e de outros abusos cometidos pela ditadura militar com o respaldo da USP. Só em 2014, a pedido da Comissão, é que a universidade reconheceu o seu erro e pediu desculpas formais aos familiares de Ana Rosa.

O físico José Leite Lopes | Wikipédia

Durante as décadas de 1930 e 1950, os aceleradores de partículas foram desenvolvidos e instalados em diversas partes do mundo. A USP, cujo departamento de física contava com diversos cientistas estrangeiros que contribuíram decisivamente para o progresso científico de nosso país, iniciava a instalação de seu acelerador. Embora a pesquisa com a física de partículas ainda caminhasse a passos lentos, seus resultados eram promissores e exigiam aceleradores mais potentes e com tecnologias mais avançadas para que novos resultados pudessem ser obtidos. José Leite Lopes, físico da Universidade Federal do Rio de Janeiro, reuniu prestígio e conhecimentos científicos suficientes para tentar implementar um acelerador de partículas na UFRJ. A história de José Lopes durante o golpe militar é dramática: decidido a deixar o país para evitar punições por conta de sua atuação política junto ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Mas, ao retirar seu passaporte, José Lopes foi preso. Liberado no dia seguinte, viajou para a França, de onde só retornou em 1967 para implementar o seu plano de construção do acelerador de partículas no Instituto de Física da UFRJ. Mas durante a implementação do projeto, José Leite Lopes foi aposentado compulsoriamente com a decretação do AI-5, junto com outras dezenas de docentes — entre os quais, Mario Schenberg.

“Ao voltar, fui designado diretor do Instituto de Física. A sede da universidade estava sendo mudada para a cidade universitária e a própria estrutura da universidade estava sendo mudada. (…) Para que o campus da cidade universitária adquirisse certa dinâmica e prestígio, pensei na instalação de um acelerador de partículas lá na cidade universitária. Uma máquina com energia da ordem de 600 milhões de elétrons-volt, energia intermediária. Ela acabava de ser produzida e seria uma máquina nem muito grande nem pequena. E os aceleradores existentes no país, em São Paulo, estavam obsoletos, após terem permitido muitos bons trabalhos. Para a elaboração do projeto foram obtidos recursos da Finep e o apoio do Instituto de Pesquisas da Marinha, cujo diretor tinha sido meu colega no CNPq, antes de 1964. A coisa estava em pleno desenvolvimento quando, em 1969, veio o AI-5. E fui obrigado a ir embora.”

Embora protestos e greves tivessem sido realizados por estudantes, mesmo sob todo o risco que este tipo de iniciativa tinha durante a ditadura militar, e a comunidade científica internacional registrasse a sua indignação com as prisões e perseguições políticas promovidas pelo regime militar, pouco foi modificado. Instituições como a Sociedade Brasileira de Física e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência manifestavam publicamente o seu descontentamento com a contínua fuga de cientistas para evitar as represálias da ditadura.

Com a reabertura do país com a lei da anistia e a esperança de redemocratização do país, os profissionais começaram timidamente a regressar. Mas o atraso estava nítido: não se faz ciência sem cientista e não se desenvolve um país em termos científicos e tecnológicos sem o progresso científico, que é justamente dependente do trabalho do cientista.

A ciência é o exercício do livre pensamento. Onde há dúvida, há liberdade. Que possamos aprender com a história e nunca permitir que os erros se repitam, especialmente quando há a imposição ideológica, o cerceamento do pensamento, a perseguição, censura. #DitaduraNucaMais.

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