CRISPR em sala de aula

Uma das coisas mais legais — e mais desafiadoras — de ensinar ciências é lidar com as constantes inovações científicas e tecnológicas que surgem em uma velocidade assustadora. Se por um lado isso revela o quanto a ciência interfere em nossas vidas, por outro, aumenta a urgência em entender como todo o desenvolvimento científico acontece. Afinal, existem relações importantes que permeiam a ciência e o trabalho dos cientistas e um dos papeis do ensino de ciências é o de apresentar e discutir a formação e a produção do conhecimento científico [1].

E nos últimos tempos não faltaram exemplos da relação entre o conhecimento científico e as suas implicações para a sociedade: além das formas de se diminuir a propagação da covid-19 na fase aguda da pandemia, tivemos a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas para a doença — que geraram toda sorte de reações a respeito do conhecimento científico e de seus métodos de pesquisa e de análise de resultados [2]. Se levarmos em conta a última década, tivemos a descoberta do bóson de Higgs [3], um avanço significativo no modelo padrão e na compreensão do surgimento do universo e que gerou uma série de debates sobre ciência e religião graças ao apelido que o bóson recebeu: “partícula de Deus” (o que é uma clara situação de aplicação do “efeito Datena” [4] que aflige muitos temas científicos); além disso, temos o desenvolvimento da tecnologia de “edição” do genoma humano que rendeu o Nobel de Química de 2020 para as duas pesquisadoras que desenvolveram a técnica.

O sistema CRISPR-Cas9, (acrônimo que pode ser traduzido como Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas) foi revelado ao mundo em junho de 2012 neste artigo [5] de autoria de Jennifer Doudna, Emmanuelle Charpentier e de outros pesquisadores de todo o mundo. A ideia por trás do CRISPR não surgiu do nada: na verdade, ela veio “emprestada” de bactérias, que criavam trechos específicos de RNA capaz de atuar nos genes de vírus que atacavam as bactérias. Atuando sobre os genes, a infecção viral cessava.

Diagrama simplificado da técnica CRISPR. Os itens foram traduzidos para melhor compreensão. Originalmente em: https://www.nytimes.com/2022/06/27/science/crispr-gene-editing-10-years.html

Numa corrida que envolveu pesquisadores de todo o mundo, o CRISPR se mostrou absolutamente revolucionário em diversas áreas. Biólogos passaram a estudar estruturas de DNA de ancestrais humanos para compreender os mecanismos da evolução de nossa espécie. Médicos passaram a procurar a modificação do DNA para frear o desenvolvimento de células cancerígenas em humanos e em outros animais. A produção de grãos cada vez mais resistentes as infecções que historicamente eram combatidas com agrotóxicos. Essas são algumas das possibilidades que já estão em prática em termos de ciência e de tecnologia envolvendo a CRISPR.

Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna, cientistas laureadas com o Nobel de Química em 2020 | Nobel Fundation.

Se você quer mais detalhes sobre a história e o mecanismo de ação da CRISPR, é útil assistir ao vídeo abaixo apresentado pelo Pedro Loss do canal “Ciência Todo Dia”:

Mas a CRISPR possui questões éticas e sociais importantes. As possibilidades de desenvolvimento, de melhoria de qualidade de vida seriam restritas apenas a quem pudesse pagar por elas? Quais seriam as implicações éticas da edição do genoma humano? Há um limite que deveria ser imposto? Se sim, quem deveria fazer a imposição: a sociedade, por meio das leis, ou os cientistas devem fazer a chamada autorregulamentação? [6]. Essas são algumas questões importantes que precisam ser discutidas pela sociedade, o que inclui, evidentemente, os alunos do ensino básico. Por isso, o CRISPR é uma boa alternativa para se discutir ciência e a formação do conhecimento científico em sala de aula: a técnica é um excelente exemplo de como o conhecimento científico é desenvolvido e aplicado para questões do cotidiano.

Os alunos podem fazer uso da CRISPR, simulando etapas da pesquisa científica que utilizam a técnica de edição do genoma, em aulas práticas de laboratório. No exterior, kits contendo a bactéria E. coli geneticamente modificadas podem ser adquiridos para demonstrar a ação sobre as enzimas: as que foram modificadas assumem a cor azul assim que são digeridas pela bactéria, enquanto as bactérias que não passaram pelo processo não exibem qualquer alteração nas enzimas — o que funciona muito bem para ilustrar a ideia de grupo de controle que são uma exigência em testes clínicos. Todo o processo é descrito neste documento (em inglês) e inclui uma sequência didática com o kit e as bactérias.

Outra proposta de atividade envolve a identificação de sequências do genoma (e de sua edição) com o auxílio de softwares gratuitos. A atividade disponível gratuitamente neste link envolve o envio de uma sequência do genoma humano e a identificação de locais-alvo para aplicação da CRISPR.

Além das duas atividades, você pode fazer uso de uma sequência didática produzida pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais [7] disponível gratuitamente aqui. O material, rico em fundamentação teórica, apresenta seis atividades educacionais cujo plano de fundo é a biotecnologia e suas implicações para a sociedade.

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[1] Diversas competências da BNCC se relacionam com a formação sobre as etapas do desenvolvimento científico e de suas implicações para a sociedade. A BNCC pode ser consultada, na íntegra, no site: http://basenacionalcomum.mec.gov.br
[2] Como discutimos aqui: Pães com bolor e a pesquisa com cloroquina: por que você precisa entender como as pesquisas de medicamentos funcionam
[3] Cujo artigo relatando a sua descoberta possui milhares de coautores, como você pode conferir aqui: https://ccult.org/artigos-cientificos-historicos-2
[4] O “efeito Datena” é a minha maior contribuição para o mundo é a adoção de termos sensacionalistas para citar, apresentar ou discutir fenômenos naturais ou qualquer evento científico (como chamar o eclipse lunar de “lua de sangue” ou o bóson de Higgs de “partícula de Deus”)
[5] Disponível em: https://www.science.org/doi/full/10.1126/science.1225829
[6] Os teóricos da ciência divergem sobre o nível de intervenção que a sociedade deveria ter sobre as pesquisas científicas. Enquanto Paul Feyerabend defende que a sociedade deva ter poder absoluto sobre a ciência, teóricos como Guiles-Gaston Granger defendem a autorregulamentação da ciência.
[7] OLIVEIRA et al. Biotecnologia na escola: propostas para pensar ciência, bioética e suas aplicações na sociedade. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/598194/2/Biotecnologia_na_escola.pdf

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Para saber mais:

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