O conhecimento que chineses, quase um século antes de Cristo, detinham sobre o magnetismo era simples, mas poderoso: além de conhecer as propriedades de atração e de repulsão que os ímãs possuem, os chineses identificaram que objetos magnetizados poderiam apontar em uma direção fixa [1]. Essa foi a chave que permitiu ao povo oriental inventar a bússola, cuja aplicação permanece viva até hoje — mesmo em tempos de localização via satélite.
Entretanto, ainda é comum a associação entre o magnetismo e o seu estudo pelos filósofos da Grécia Antiga. Filósofos como Tales de Mileto introduziram o magnetismo no ocidente por volta do século VI a.C. Tales explicava o fenômeno a partir do antropomorfismo, isto é, a ideia de que objetos tem características humanas. No caso do magnetismo, o filósofo grego atribuía a atração da magnetita (mineral que compõe o ímã) sobre o ferro com a ideia de que o ferro “recebia” vida do ímã que o atraía. Imersos em sua mitologia, fazia sentido atribuir os mesmos sentidos de vida que sua mitologia apresentava aos corpos humanos e aos fenômenos naturais.
Ainda que chineses, gregos, árabes e indianos tivessem estudado e identificado diversas características e propriedades dos ímãs, pouco se sabia a respeito da origem do fenômeno. Tal qual fenômenos elétricos, eles eram utilizados, prioritariamente, como meio para demonstrações e até entretenimento [2], mas o estudo teórico dos fenômenos teve que esperar muito tempo para começar a acontecer. No caso do magnetismo, os estudos sistemáticos começaram no século XIII, com Pierre de Maricourt — que apresentou a impossibilidade de existência de um ímã com apenas um polo magnético — e chegam ao estudo crucial de William Gilbert, que publica a obra “De Magnete” e apresenta a Terra como um grande ímã: “A Terra tem uma alma magnética”, escreveu o físico inglês. Carl Friedrich Gauss, outro grande expoente da matemática e da física, mediu o valor do campo magnético terrestre no início do século XVIII.
De fato, Gilbert estava correto. Hoje sabemos que o núcleo terrestre, a profundidades que variam entre 2900 km e 5200 km é composto por uma liga metálica fluida constituída prioritariamente de ferro. Como está imersa em uma região com variação de temperatura, essa liga está sujeita as correntes de convecção do calor, que da mesma forma que fazem a água, quando aquecida em um recipiente, ter movimentos internos de subida e de descida do líquido. Esse movimento, em conjunto com a rotação do planeta e o atrito da liga com partes sólidas gera uma corrente elétrica. Se você conhece a história do experimento de Oersted, sabe que correntes elétricas podem gerar campos magnéticos (os eletroímãs são testemunhas disso!). Assim é criado o campo magnético terrestre que é aproveitado em bússolas, nos ímãs de geladeira, aceleradores de partículas e em exames médicos como ressonâncias magnéticas.
Ressonâncias magnéticas são resultado do uso de bobinas que, ao serem atravessadas por uma corrente elétrica, conseguem gerar um campo magnético ao seu redor. O campo magnético terrestre médio é da ordem de 0,4 mT (microteslas). Equipamentos de ressonância magnética produzem campos magnéticos milhares de vezes maior do que o da Terra (a intensidade do campo magnético utilizado varia, entre outros fatores, por conta da área e do tipo de tecido a ser observado) e podem obter imagens de quase todas as partes do corpo humano. O princípio de funcionamento da ressonância magnética começou a ser desvendado no fim dos anos de 1950: a descoberta de que núcleos atômicos, quando imersos em um campo magnético, absorviam energia de ondas de rádio [3] e emitiam sinais em um espectro característico. É esse espectro que é “lido” pelos computadores e transformado em imagem visível que médicos utilizam em seus diagnósticos. A partir de 1970, percebeu-se que era possível diferenciar tecidos a partir do espectro emitido e captado. A ressonância magnética se apresentava ao mundo como uma forma muito eficiente e quase sem contraindicações para exame [4].
Ressonâncias magnéticas podem ser utilizadas para fins médicos ou para outras aplicações, como em pesquisas com artefatos arqueológicos [5]. Ou para ver uma demonstração de afeto.
Em 2015, durante a coleta de imagens para o estudo da circulação sanguínea no cérebro de crianças, a equipe de neurociência do Saxelab produziu uma das ressonâncias magnéticas mais significativas que poderiam produzir, ainda que ela não apresentasse nenhuma alteração fisiológica. Para obter a imagem, era necessário que a criança permanecesse imóvel durante todo o tempo em que o equipamento capta as imagens por ressonância. Como explica a neurocientista Rebecca Saxe:
“O bebê finalmente está dormindo, pressionado firmemente contra o peito de sua mãe, e assim ainda é suficiente para a ressonância magnética ver dentro de sua cabeça. Uma única imagem de RM [ressonância magnética], como esta, leva vários minutos para ser capturada. Mover apenas um milímetro deixa um borrão na tela. A mãe e o bebê devem manter sua pose, como se fosse um daguerreótipo.“.
Rebecca Saxe, neurocientista do MIT
O resultado da ressonância foi apresentado na imagem a seguir, em que uma mãe beija seu filho enquanto a ressonância acontece.
Esse beijo registrado por meio da ressonância magnética é um simbólico. Ao mesmo tempo em que nos mostra como fomos capazes de partir do entendimento sobre a atuação dos polos de um ímã até aplicar suas características para nos ajudar a chegar em lugares nunca imaginados e a ver o que poderia muito bem ser considerado impossível, a imagem reitera aquilo que temos de mais sublime em nossa existência. Um beijo, a acolhida, o abraço em um momento que pode parecer assustador ou a aplicação de campos magnéticos em tecnologias de imagens: tudo isso inclui a compreensão. Compreensão é uma chave que abre portas dentro e fora da ciência.
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[1] Uma excelente fonte para conhecer descobertas e estudos sobre fenômenos naturais feitos por povos não-europeus é o livro: “Descobertas Perdidas”, escrito por Dick Teresi (Companhia das Letras, 2008, 439 p.). Nele, Teresi apresenta fontes históricas a respeito de diversas descobertas que, apesar de serem reverenciadas como obra da ciência europeia, já haviam sido feitas por outros povos. No caso do magnetismo, além dos chineses, árabes, indianos, incas e maias já tinham conhecimento sobre características dos ímãs.
[2] O que me leva a refletir sobre como perguntas são decisivas na ciência (e Gaston Bachelard é uma figura obrigatória nesse sentido).
[3] O espectro eletromagnético é composto por diversos pedaços ou trechos, que se diferenciam pela frequência ou pelo comprimento das ondas emitidas. Leia mais aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Espectro_eletromagn%C3%A9tico
[4] Para conhecer os detalhes do funcionamento da RM, leia: https://www.scielo.br/j/cr/a/mmPL6rMp5vmPCRpmYH84Kbm
[4] Para saber mais sobre como a ressonância magnética pode ser aplicada em estudos arqueológicos, acesse: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5741202/mod_resource/content/0/M%C3%A9todo_data%C3%A7%C3%A3o_arqueol%C3%B3gica_por_Ressonancia_paramagn%C3%A9tica_eletr%C3%B4nica_Baffa.pdf
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