Pesticidas, cultura científica e o movimento CTS

Espero que não seja surpreendente constatar que o ensino não é uma entidade desassociada da sociedade. Seus objetivos e concepções sofrem grande influência dos contextos sociais de uma época (e, claro, dos grupos sociais que conseguem impor a sua influência sobre os modelos de ensino). Mas se você precisa de alguns exemplos, basta verificar a propostas educacionais surgidas ao longo da história da educação e compará-las com o momento social e histórico vivido [1]. Por exemplo, durante a ditadura militar brasileira (1968-1985), em que vivenciávamos todo o contexto da guerra fria e dos avanços tecnológicos, o ideal era a formação de um cidadão apto ao mercado de trabalho. O que, em linhas gerais, significava a capacidade de obedecer, cumprir tarefas no prazo e ter boa memorização de fatos, sem a busca de conexões ou de relações de causa e consequência entre eles, como discutido neste artigo [2].

A partir da década de 1970, a perspectiva sobre o ensino de ciência começa a mudar. A mudança se relaciona com novas visões sobre a ciência e o fazer científico: sai uma atividade neutra e impessoal, cuja prática não influenciava nenhuma mudança no modo de vida da população, e entra a perspectiva de que a ciência é uma atividade humana, com implicações de todo tipo em nosso modo de vida e, portanto, era direito das populações compreenderem a ciência como parte de suas vidas. Essa nova perspectiva é conhecida até hoje, embora com nomes e adequações para o nosso tempo. Trata-se do movimento CTS — ciência, tecnologia e sociedade.

O movimento CTS nasce de duas correntes com visões históricas e epistemológicas relativamente diferentes: a tradição europeia, que tem ênfase nas dimensões sociais relacionadas com a produção do conhecimento científico — e, portanto, vê o conhecimento científico como resultado de um processo — e a tradição norte-americana, cuja ênfase está dimensão ética que o desenvolvimento científico e o desenvolvimento tecnológico possuem para a sociedade como um todo. Para o contexto da época, em que ciência e tecnologia eram vistas dentro do ideal positivista de neutralidade, o movimento CTS foi uma revolução: agora ciência e tecnologia eram construções humanas, sujeitas a motivações, ideologias e implicações que poderiam ou não ser benéficas [3]. Essa foi uma importante mudança na visão que preparou os currículos e o próprio ensino de ciências da natureza, primeiro nos países industrializados e, posteriormente, nos países do chamado “terceiro-mundo” (argh!).

A américa latina, aliás, ocupa um lugar de destaque para a relevância do movimento CTS. Com a crescente destruição do meio-ambiente e consequente piora na qualidade de vida da população provocada pelo irrestrito uso de pesticidas, poluição e uso dos recursos naturais para compor a matéria-prima das indústrias que se instalaram na região (muitas delas aproveitando a mão de obra mais barata), percebeu-se que era necessário agir contra esses problemas. A ação precisaria ser multidimensional: no campo educacional, formando cidadãos que compreendessem a formação do conhecimento científico e de suas implicações, ao mesmo tempo em que o campo político atuava, conclamando a população a pressionar as autoridades a serem, ao menos, muito mais rigorosas na liberação e na fiscalização de aplicações tecnológicas.

Talvez o caso mais simbólico de atuação do movimento CTS é o relacionado com a proibição do Dicloro-Difenil-Tricloroetano — ou DDT para os íntimos. Inseticida de baixo custo produzido a partir da segunda guerra mundial, foi usado como meio para combater os insetos que transmitam doenças como a malária e também como defensor agrícola em plantações em todo o mundo. O uso do DDT cobrou o seu preço, que foi altíssimo: a morte de aves migratórias que entravam em contato com o inseticida espalhado sem controle pelo ar, a contaminação derradeira do solo, rios e lagos que consequentemente assassinou a vida aquática e arruinou as economias de quem sobrevivia da pesca, além de estar diretamente relacionada com inúmeros casos de câncer nas pessoas que tinham contato recorrente com a substância. É a publicação do livro de Rachel Carson “Primavera silenciosa” (Editora Gaia, 2010, 328p.) que o cenário catastrófico do uso sem regulação de pesticidas foi apresentado ao público e abriu o espaço para que o movimento CTS pudesse atuar junto à sociedade nos campos educacional, político e jurídico para que substâncias como o DDT finalmente fossem proibidas.

Mas a polêmica da proibição do uso do DDT ainda não estava encerrada. Curiosamente, a indústria de tabaco entrou na mira dos órgãos de saúde de todo o mundo que desejavam regulamentar a sua produção, o seu uso e a sua publicidade (se você lembra do “cowboy da Marlboro” ou do icônico McLaren MP4/4 ou, mais recentemente, dos vapes, deve entender o peso cultural da publicidade da indústria de cigarros). Como conta em detalhes essa reportagem da Wired, a indústria de tabaco começou a se apoiar no argumento de que ter proibido o DDT causou muito mais mortes do que o seu uso causaria, já que o avanço da malária e de outras doenças infecciosas esteve sem controle por conta da ausência de um combate tão efetivo quanto o DDT oferecia. E mais: a indústria tentou minar a confiança nos resultados os estudos científicos que embasaram a proibição do inseticida — e dos estudos que mostravam a associação entre o consumo de tabaco e câncer —, trazendo ao debate sobre o tema a ideia de que os estudos anteriores estavam “carregados de ideias politicamente corretas e sem a neutralidade necessária por parte dos cientistas”. O resultado, afirma a Wired, é que a confiança na ciência foi transformada em um ceticismo com tendências radicais, que desejava retirar o conhecimento científico como fonte para as políticas públicas sobre o tabaco (isso também não parece familiar?).

Ilustração por SAM WHITNEY, WIRED; GETTY IMAGES

O movimento CTS (e o CTSA, que inclui a pauta ambiental em seu nome ou ainda o CTS&I, em que a inovação aparece como parte de seus objetivos) enquanto movimento educacional foi uma revolução e está presente quando se discute o necessário ensino de ciências que forme pessoas críticas ao conhecimento científico, como é discutido em obras como o livro “A necessária renovação do ensino de ciências” [4]. Os alicerces da pedagogia de Paulo Freire foram fundamentais para que o movimento tivesse a sua base epistemológica e pedagógica para atuar no campo educacional, embora essa atuação tenha sido relativamente tardia [3; 5]: enquanto o movimento acontecia nos países desenvolvidos nos anos 1960 e 1970, ele começa a ter sua projeção curricular entre o fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990. Por que tão tarde, você poderia perguntar? Porque o nosso desenvolvimento científico demorou a acontecer e, com isso, toda a mudança de perspectiva sobre o conhecimento científico também tardou a aparecer por aqui.

O fato de vivermos em sociedade inclui perceber que estamos sujeitos a influência de seus diversos grupos. O que aprendemos com o movimento CTS é que é importante saber como um de seus principais atores — o conhecimento científico e tecnológico — atua sobre nossas vidas, de modo a permitir que você, eu ou qualquer pessoa entenda uma das dimensões que podem afetar as suas vidas. Além disso, os aspectos históricos do movimento nos mostram que essa tentativa de influência ocorre de todos os lados, mas nem todos os lados são transparentes em seus objetivos. E se cada vez mais dependemos da ciência e da tecnologia para entender o mundo que nos cerca, devemos também saber como essas duas áreas se desenvolvem. Sem o movimento CTS, provavelmente seríamos muito menos críticos com o mundo que nos cerca — o que, em algum grau, representa o aumento da responsabilidade coletiva sobre o todas as formas de conhecimento. Ou, como conclui o texto da Wired citado no sexto parágrafo:

A manipulação da história do DDT por defensores do livre-mercado mostra como a opinião pública sobre a ciência é moldada por jogadores que muitas vezes nem sabemos que estão no jogo. Cobertura de notícias, política, ativismo relacionado a questões científicas — tudo é formado por forças que não podemos ver. Nos tornamos um país em condições de confiar na ciência — sobre aquecimento global, […], telefones celulares, engenharia genética, edição de genes, vacinas, você — e, infelizmente, com pelo menos uma boa razão. Porque em pelo menos alguns casos inesperados, tem sido difícil saber quem está enquadrando e amplificando o que ouvimos sobre evidências científicas, e quais são seus interesses subjacentes.

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[1] Ver o texto: O PISA e o senso comum sobre o ensino de ciências
[2] KRASILCHIK, M. Reformas e realidade: o caso do ensino das ciências. São Paulo em Perspectiva, v 14, n.1. São Paulo, 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/spp/a/y6BkX9fCmQFDNnj5mtFgzyF/?format=pdf&lang=pt
[3] VAZ, C.R; FAGUNDES, A.B; PINHEIRO, N.A.M. O Surgimento da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) na Educação: Uma Revisão. Disponível em: https://ensinandoquimica.files.wordpress.com/2013/05/o-surgimento-da-cic3aancia-tecnologia-sociedade-na-educac3a7c3a3o.pdf
[4] O livro é organizado por importantes nomes da pesquisa em ensino de ciências: Ampario Vilches; Anna Maria Pessoa de Carvalho; Antonio Cachapuz; Daniel Gil-Pérez e João Praia e teve a sua terceira edição publicada em 2017. No Brasil, foi publicado pela Cortez Editora.
[5] Cuja história e reflexões sobre a sua implementação no Brasil foram discutidas no artigo: Reflexões para a implementação do movimento CTS no contexto educacional brasileiro (AULER E BAZZO, 2012). Disponível em: https://www.scielo.br/j/ciedu/a/wJMcpHfLgzh53wZrByRpmkd/

Imagem de destaque por upklyak

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