InícioRaios-X, microscópios e um empurrão para as mudanças culturais

Raios-X, microscópios e um empurrão para as mudanças culturais

Quando o físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen produziu acidentalmente um novo tipo de radiação capaz de penetrar tecidos moles e revelar o interior do corpo humano como nunca fora possível na história da ciência, não tinha ideia da revolução que a sua descoberta teria para o futuro da humanidade. Graças aos raios-X – que recebeu esse simpático nome por ser um tipo de radiação desconhecida para Röntgen e que atualmente sabemos se tratar de radiação eletromagnética, como a luz ou as ondas de rádio – a medicina deu salto qualitativo gigantesco. Pela primeira vez, poderíamos realizar exames e embasar diagnósticos com uma precisão muito maior (e sem a necessidade de intervenções cirúrgicas), além de conseguir estudar a fisiologia animal em detalhes – e sem provocar sofrimentos desnecessários que por vezes eram fatais. Mais do que ser utilizado como ferramenta da medicina, os raios-X também permitiram o desenvolvimento de testes de qualidade e a melhoria de técnicas de produção, especialmente de objetos que utilizavam ligas metálicas e soldas (o próprio Wilhelm Röntgen tirava radiografias de seus rifles, apontando defeitos em sua construção.

Radiografia feita por Röentgen mostra uma falha na construção de seu rifle de caça | Wikipédia


A descoberta dos raios-X são um exemplo clássico de como o avanço do conhecimento científico provoca mudanças profundas na sociedade. Mas não é o único. Coincidentemente, no mesmo novembro em que Röntgen descobriu os raios-X e fez a primeira radiografia da história, outro cientista europeu entrava para a história por desenvolver um equipamento que até hoje é largamente utilizado. Pouco mais de 230 anos antes, Robert Hooke publicava o seu livro “Micrographia”, com ilustrações de insetos, células vegetais, tecidos de seres vivos obtidas por meio do microscópio composto, cujo desenvolvimento é atribuído ao próprio Hooke.

Robert Hooke, autor de Micrographia | Wikipedia

O microscópio é um instrumento óptico que amplia a imagem de objetos com o auxílio de uma ou de mais lentes, ou seja, ele funciona a partir da incidência dos raios de luz que atingem uma ou mais lentes, que por sua vez, provocam a ampliação da imagem de objetos. A sua invenção ocorreu no século XVI e é creditada aos holandeses Hans e Zacarias Janssen, embora as primeiras observações com finalidade científica tenham sido realizadas pelo também holandês Antonie van Leeuwenhoek, que observou pela primeira vez glóbulos vermelhos do sangue, fibras musculares e os espermatozoides. Cabe lembrar que Leeuwenhoek inicialmente utilizava o microscópio para verificar a qualidade dos tecidos que vendia – ele era vendedor de tecidos, profissão que herdara de seu pai. Ao perceber a possibilidade de associar lentes para ampliar objetos de acordo com a sua necessidade, Leeuwenhoek criou uma enorme quantidade de lentes e ajudou de forma decisiva a melhorar o equipamento criado por seus compatriotas.

O microscópio utilizado por Hooke era uma versão aperfeiçoada do microscópio criado por Antonie van Leeuwenhoek, o que foi um imenso marco tecnológico: pela primeira vez, um microscópio era constituído de partes móveis, o que permitiu observar objetos muito pequenos com maior facilidade, já que a distância focal poderia ser alterada a partir de um parafuso colocado no corpo do microscópio. Além disso, o microscópio de Hooke poderia ser direcionado para qualquer ponto, vantagem que o microscópio de Leeuwenhoek não possuía.

O microscópio utilizado por Hooke em suas observações que deram origem ao Micrographia | Micrographia e Wikipédia


Além de observar, Hooke reproduziu as imagens por ele observadas e as publicou no livro “Micrographia”, que rapidamente tornou-se um clássico científico e alçou o nome do cientista para a história. Na obra publicada em 1664, Hooke ilustrou pulgas, piolhos, larva e os olhos de mosquitos e das estruturas de penas de aves e a estrutura de folhas e de estruturas vegetais, como a cortiça – utilizada como matéria-prima das rolhas da garrafa de vinho e de murais de recado – e até dos cristais de gelo.

A mosca azul observada por Hooke


Os olhos de uma mosca
A reprodução da imagem de uma pulga visualizada por Hooke

Coube a Hooke cunhar o termo “célula” para a estrutura que compõe os seres vivos, embora a célula identificada pelo cientista seja conceitualmente diferente da atual.

Tentando compreender a estrutura da cortiça, Hooke observou cavidades preenchidas com ar com formato hexagonal e as nomeou de células (que vem do latim “cella”, ou “pequena cavidade”). Hoje sabemos que a estrutura observada por Hooke era, na verdade, a parede das células mortas da cortiça. Evidentemente, não é possível culpar o cientista inglês por não ter conseguido nomear corretamente as coisas: afinal, como podemos dar nome para aquilo que não sabemos que existe?

As células vegetais de cortiça identificadas por Hooke

Mas além de trazer imagens detalhadas de objetos que nunca mais vimos com os mesmos olhos, o microscópio foi protagonista de uma importante mudança cultural: os microrganismos. Explica-se: a presença de microrganismos, como as bactérias, não era associada a locais considerados limpos ou puros. A água da chuva, por exemplo, era considerada absolutamente limpa. Do mesmo modo, a saliva e o suor de mulheres da elite europeia, idem. Com o uso do microscópio, mostrou-se que essas substâncias não eram livres da presença desses microrganismos. E mais: alguns desses microrganismos estavam presentes na saliva de mulheres que eram consideradas “puras”, pois essas mulheres nunca tinham tido contato sexual com outras pessoas (puritano, eu sei). Pela primeira vez, a humanidade percebia que formas de vida muito menores do que nós, vivia em nossos corpos e em objetos de nosso cotidiano.

Foram essas observações que deram início aos tratamentos que efetivamente curaram inúmeras doenças infecciosas e deu razão para o surgimento do saneamento básico como conhecemos, ainda que durante muitos anos, não se tenha associado a presença dos microrganismos e as doenças.

E se você ficou com vontade de folhear o Micrographia, o Google Arts & Culture tem um site dedicado a obra. Basta acessar este link aqui.

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F. C. Gonçalves

Flávio “F. C.” Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.

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