Uma falácia muito difundida fora — e em alguns casos, dentro — do ambiente educacional é aquela que diz que o “ensino é neutro”. Para os defensores desse modelo impossível, o ensino de qualquer disciplina deve se ater apenas a apresentar conceitos e a resolver exercícios idealizados e preferencialmente sem qualquer conexão com a vida real.
Os defensores da neutralidade educacional julgam que raciocinar sobre aquilo que é discutido — especialmente se o raciocínio conclui qualquer coisa que aponte na direção dos direitos humanos — é um crime, um pecado capital, cuja pena deve ser a demissão sumária seguida de um esforço para apagar o que quer que tenha sido apontado fora dos muros da neutralidade.
Ocorre que essa visão de neutralidade do conhecimento não cabe nem na ciência nem na educação. Não há como neutralizar sentimentos, concepções pessoais ou de um grupo social do qual um ou mais cientistas fazem parte. Não é preciso ir muito longe na história humana para colhermos casos em que o desenvolvimento científico se deveu muito mais a defesa de um ideal político do que para o respeito aos direitos humanos. Pouco antes da primeira guerra mundial eclodir, o químico alemão Fritz Heber desenvolveu uma forma de capturar o hidrogênio e o nitrogênio presentes no ar, o que permitiu a fabricação de amônia e consequentemente, a fabricação em larga escala de fertilizantes sintéticos [1]. Sem eles, provavelmente não teríamos condições de alimentar os sete bilhões de habitantes do planeta.
Mas a descoberta de Heber tinha outra aplicação nem um pouco simpática à vida humana: a obtenção do nitrogênio pelo ar atmosférico permitiu que a Alemanha criasse explosivos e armas químicas, como o gás cloro, e utilizasse sem qualquer pudor durante a primeira guerra. O cientista alemão orgulhava-se de sua posição — vista por ele como “patriótica” — a ponto de supervisionar pessoalmente um ataque químico contra tropas inimigas na Bélgica, em 1915. Heber assistiu os soldados morrerem em menos de cinco minutos, voltou para um banquete em sua homenagem, perdeu a família [2] e, no dia seguinte, estava na linha de frente da batalha contra os aliados.
E por que Heber fez tudo isso? Porque, segundo ele, “em tempos de paz, um cientista trabalha para o mundo, mas em tempos de guerra, ele serve ao seu país”. Assim como muitos outros intelectuais que decidiram dedicar os seus conhecimentos à causa nazista [3], Heber provavelmente sentia que contribuir para que a Alemanha vencesse a guerra, mesmo que isso custasse o descumprimento de tratados de guerra e mortes de civis e militares em ataques que provocariam o sofrimento e a morte de quem estivesse por perto.
É possível entender que o sentimento patriótico de Heber e de outros cientistas durante o regime nazista se devia a situação de seu país. Com a Alemanha imersa em uma crise social e econômica, era urgente que as coisas se resolvessem. A chegada de Hitler ao poder, em meados da década de 1930, acelerou o processo de escolha de culpados para a crise alemã. Judeus, comunistas, homossexuais, deficientes e outros grupos sociais foram culpados pelo fracasso alemão e o sentimento ganhou forças graças a intervenções precisas, a propagandas que estimulavam o ódio aos povos perseguidos e exacerbavam o ideal ariano do regime e a apelos culturais e educacionais que o nazismo soube utilizar a seu favor.
O ideal nazista defendido por Adolf Hitler tinha um de seus alicerces na educação, sobretudo, na educação de crianças e adolescentes. Em seu Mein Kampf, Hitler criticava a educação alemã, que em suas palavras, “formava homens que não eram fortes, mas flexíveis sabichões”, pois não promovia “nenhum treinamento da força de vontade e determinação” e “não cultivava o caráter no indivíduo”. Desta forma, continua Hitler, “é dever do Governo velar pela educação do povo e impedir que o mesmo tome orientação errada, fiscalizando a atuação da imprensa em particular (…). Sua imensa importância [da educação] está no fato da uniforme a persistente repetição da sua propaganda”.
A mensagem de Hitler passada por meio de seu livro e colocada em prática com a ascensão de seu governo continha exatamente aquilo que ele precisava defender: que a educação só seria efetiva se fosse feita de acordo com os seus ideais: uma educação ariana, que demonstrasse por si mesma a pureza e a superioridade de seu povo, ao mesmo tempo em que incitava o ódio contra aqueles que foram declarados os inimigos da Alemanha. Desta forma, o currículo e as aulas em escolas alemãs passaram a refletir os ideais nazistas e a disseminar o ódio contra judeus. Isso se deu em alguns atos: centralizando o ensino no estado, impedindo que outras visões fossem debatidas, ao mesmo tempo em que incentivou a constante vigilância entre alunos e professores para identificar discursos de oposição ao regime nazista.
O nazismo encontrou adeptos nos mais diferentes setores da sociedade alemã, dilacerada pela guerra e economia em decadência. Os problemas econômicos e sociais que professores vivenciavam foi um dos fatores para a criação de grupos como a União dos Professores Nacional-Socialistas (Nationalsocialistische Lehrerbund ou NSLB), cujo surgimento em 1929 deu refúgio a professores defensores do nacionalismo e que mais tarde, seriam simpáticos ao nazismo. Quando o regime nazista chega ao poder, o prestígio da NSLB aumenta a tal ponto que a adesão ao grupo, mesmo de quem não fosse favorável aos seus ideais, era uma premissa básica para manter-se empregado e distante da possibilidade de perseguições por ser considerado um inimigo do estado nazista [4].
Com a educação, assim como na ciência com os cientistas que apoiaram abertamente o regime, não foi diferente. Professores filiaram-se a grupos simpatizantes do nazismo, como a União dos Professores Nacional-Socialistas (Nationalsocialistische Lehrerbund ou NSLB). A filiação aos grupos tinha vários motivos: da insatisfação com a pouca valorização da profissão ao radicalismo com que docentes tratavam, além de contribuírem financeiramente, incluíam em suas aulas as novas diretrizes de ódio.
As áreas do conhecimento tornaram-se áreas de ênfase, isto é, a Física passou a ser a Física Alemã, a Biologia, a Biologia Alemã e assim, sucessivamente com as outras áreas do conhecimento. Todo o contexto do ensino das disciplinas era pautado no nazismo e na ideia de superioridade da raça ariana. Isso se refletiu, por exemplo, na adoção de uma estrutura curricular que levava em conta conteúdos de mecânica, óptica, termologia, ondas e eletromagnetismo que ignorava, quando era conveniente, os avanços da ciência considerada não-ariana — o que incluía as propostas de Albert Einstein e de boa parte dos avanços da física a partir do século XX. Um dos principais livros-texto que enfatizava essa nova perspectiva era de autoria de um cientista laureado com no Nobel de Física em 1905: Phillip Lenard.
Outra obra de grande importância na nova educação nazista foi o Física da Defesa: um guia para professores (Werhphysik), escrito por Erich Günther e publicado em 1936. Nele, Günther apresentava tópicos de acústica, óptica e eletromagnetismo contextualizando situações de defesa pessoal frente a um inimigo pronto para o ataque. Atividades didáticas práticas inseriam os alunos em situações hipotéticas em que deveriam aprender a identificar o movimento de inimigos através do som emitido ou a utilizar a ilusão de óptica para criar efeitos de projeção para aumentar a percepção de perigo causado em seu inimigo.
“Que tipo de erro de mira é causado por uma massa de mira fortemente iluminada de cima, da esquerda, da direita? (Ilusão de óptica: áreas brilhantes parecem maiores do que são. Com o lado esquerdo iluminado, o lado esquerdo da massa de mira parece muito grande. Se a massa de mira parece estar no meio, na verdade está fixado à direita. Resultado: atire para a direita!) Ao atirar de um rifle, pode ser necessário alternar entre a alça de mira e a massa de mira.” (GÜNTHER, 1936, p. 31, tradução de Lopes, Ortega e Mattos, 2020)
Práticas experimentais que utilizavam armas de fogo em sala de aula eram incentivadas. Você não entendeu errado: o manual de Günther ensinava como professores poderiam atirar com as suas armas e extrair resultados experimentais disso. Veja o exemplo a seguir:
O pêndulo é um bloco de madeira H suspenso perpendicularmente ao chão e possui uma placa de aço St como mostrado na Figura 108 [figura abaixo]. A suspensão do pêndulo é mostrada de frente na figura 108a. De modo a determinar a profundidade de penetração S do projétil com precisão, o bloco H consiste em uma série de discos de madeira planos e empilhados, que estão presos por duas braçadeiras K1 e K 2. O pêndulo desenha, ao oscilar, em uma tira de papel Sp fixa atrás dele em C com atrito insignificante, que corre em um prato Ti e em um guia F. É essencial que o projétil atinja o bloco de madeira no seu “centro de impacto” B. Para garantir isso, a arma deve ser firmemente fixada e os primeiros tiros devem ser mirados em um disco de cartão P colocado no plano do pêndulo. Uma caixa de areia pode servir como um coletor de balas (GÜNTHER, 1936, p. 91-92, tradução de Lopes, Ortega e Mattos, 2020).
O que pode ser chocante é que ainda hoje, em 2022, encontramos exercícios teóricos que adotam o pêndulo balístico como fonte de estudo sobre energia cinética e colisões. Pelo menos evoluímos o suficiente para não permitir demonstrações que utilizam armas de fogo.
Outros exemplos ainda mais duros do reflexo da intolerância e do antissemitismo nazista ensinado nas escolas:
- A famosa imagem de uma aula de biologia em que alunos devem diferenciar as características físicas de judeus e arianos para que possam identificar seus inimigos.
Uma estudante alemã participando de aulas de “educação racial” | Reproduzido de Spartacus Educactional
- O ensino de que a miscigenação é um dos problemas da sociedade alemã e que, para os nazistas, ela só teria o seu mais alto grau quando chegasse a pureza que a torna superior.
- Imagens presentes em livros didáticos que apresentavam todos os judeus como pessoas de caráter duvidoso, além de estereotipar os seguidores do judaísmo na Alemanha:
- Um exercício matemático de um livro escolar nazista discriminando pessoas com deficiência e visando demonstrar que elas eram um fardo para o Estado
A importância da educação reside, em última medida, no resultado da formação proporcionada. Não é sem motivo que a educação, de tempo em tempos, sofre com ataques de grupos que desejam pautar o pensamento e as relações sociais. O ensino de ciências, em especial, pode ser uma ferramenta muito poderosa para qualquer lado: da promoção de um ensino realmente crítico, reflexivo e que forme um cidadão capaz de articular e de relacionar fatos, dados e informações ou que admirarão apenas a dor, a possibilidade de se atingir um alvo, de se destruir seus inimigos que ganharam esse status apenas porque existem. Essa é uma reflexão diária e muito pertinente que todos nós devemos fazer, especialmente para que não tenhamos sequer a sensação de normalizar situações pautadas na violência, como esse exemplo trazido pelo professor e pesquisador da FEUSP, Cristiano Mattos nesta palestra de 2020.
A figura a seguir mostra uma das cenas vistas durante a Copa das Confederações no Brasil. Os policiais militares responderam às ações dos manifestantes com bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha em uma região totalmente plana onde era possível avistar a todos.
Suponha que o projétil disparado pela arma do PM tenha uma velocidade inicial de 200,00 m/s ao sair da arma e sob um ângulo de 30,00º com a horizontal. Calcule a altura máxima do projétil em relação ao solo, sabendo-se que ao deixar o cano da arma o projétil estava a 1,70 m do solo. Despreze as forças dissipativas e adote g = 10,00 m/s2.(UNIFOR, 2014)
Realmente nos interessa desprezar o contexto social e político e as suas implicações para o ensino?
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Este texto foi inspirado na palestra do professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Cristiano Mattos. Desde a palestra, ministrada em 2020 e cuja íntegra você pode conferir na Cesta Científica #11, tenho ensaiado a escrita deste texto — o que só consegui agora, confesso, por uma imensa força de vontade de expor a minha indignação e o meu espanto com as práticas educacionais do regime nazista. A história, como dizem, existe para lembrarmos as pessoas dos erros cometidos. É bom que não nos esqueçamos dos erros que apresentaram (e apresentam) a maldade humana como um estado normal de nossa existência. Para finalizar, existe pesquisa em educação de respeito no Brasil!
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[1] Para mais detalhes sobre como o cientista alemão conseguiu chegar a esta descoberta, leia “Quando deixamos de entender o mundo”, de Benjamin Labout (tradução de Paloma Vidal), publicado pela Editora Todavia (2022, 180 p.)
[2] Consta que a esposa de Heber, Clara Immerwahr, provavelmente a primeira mulher a concluir o doutorado em Química na Alemanha, cometeu suicídio tamanho foi o seu horror pelas atrocidades cometidas pelo marido.
[3] Uma excelente referência sobre o tema é o livro “Crer e Destruir”, escrito pelo historiador francês Christian Ingrao e publicado no Brasil pela Zahar (2015, 502 p.)
[4] Ainda assim, professores de origem judaica ou com algum contato com os grupos considerados inimigos eram sumariamente demitidos e perseguidos, o que fez com o número de professores diminuísse nos primeiros anos do regime nazista.
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Para saber mais:
- Detalhes da visita de Fritz Haber ao Brasil: http://quimicanova.sbq.org.br/detalhe_artigo.asp?id=9261
- Sobre a responsabilidade pessoal em tempos difíceis, Primo Levi e Friz Haber (dois cientistas alemães em lados opostos): https://oglobo.globo.com/epoca/gustavo-pacheco/coluna-o-cientista-o-sobrevivente-fritz-haber-primo-levi-23839733
- Education in Nazi Germany (Educação na Alemanha Nazista – em inglês): https://spartacus-educational.com/GEReducation.htm
- Educação na Alemanha Nazista (Wikipédia): https://pt.wikipedia.org/wiki/Educa%C3%A7%C3%A3o_na_Alemanha_Nazista
- Exemplos ilustrados de como o nazismo doutrinou a população ao longo do tempo: https://www.theholocaustexplained.org/life-in-nazi-occupied-europe/controlling-everyday-life/controlling-education/
- FELDMAN, Daniel. Reading Poison: Science and Story in Nazi Children’s Propaganda. Criança Lit Educ 53, 199-220 (2022). https://doi.org/10.1007/s10583-021-09454-9
- LOPEZ, FELIPE SANCHES, ORTEGA, JOSÉ LUÍS NAMI ADUM e MATTOS, CRISTIANO. Ensino de ciências como controle do estado: o caso da Alemanha nazista. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências (Belo Horizonte) [online]. 2020, v. 22. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epec/a/P5RsRypH5kRYVH7kk3Gbx7v/
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