Ciência ilustrada no estilo do xkcd

Qualquer um que já tenha tido contato com um artigo científico já percebeu que a linguagem e o estilo empregados tendem a ser absolutamente técnicos. Os textos são carregados de informações, referências, gráficos e termos conhecidos por pessoas de uma determinada área — a quem, inclusive, o artigo se destina. Você pode então se perguntar: “por que é que cientistas [de qualquer área] utilizam uma linguagem tão técnica em seus textos?”. A resposta é: depende. Em geral, é necessário ser o mais preciso possível para que se tenha certeza de que todos os dados e pressupostos foram corretamente analisados e se nenhum erro de interpretação acabou acontecendo. Mas sociólogos da ciência, como o francês Bruno Latour, discutem que a adoção deste tipo de linguagem é uma forma de cientistas se protegerem de críticas ou de conflitos entre os pares.

A linguagem acadêmica tende a ser neutra, sem a transmissão de sentimentos e estritamente padronizada. Pense em quão inovador foi o trabalho de Nick Sousanis, artista e pesquisador em educação que defendeu e publicou a sua dissertação não em um texto acadêmico escrito em terceira pessoa e estritamente preso ao jargão técnico e aos estilos de normas de referência, mas em uma obra em formato de quadrinhos. Sim, um trabalho acadêmico sério, defendido na Universidade de Columbia, foi publicado, em 2015, como uma história em quadrinhos. A tese, inclusive, deu origem ao livro “Unflattening” (Desplanar, no livro em língua portuguesa publicado no Brasil pela editora Veneta).

É uma tarefa extenuante interessante transformar uma linguagem acadêmica em outros tipos de linguagem. Em educação, por exemplo, há a constante prática da “transposição didática” [1], em que os saberes acadêmicos são transpostos (ou “traduzidos”, como queiram) para os saberes que são discutidos em sala de aula.

Mas não é em educação que acontece esse tipo de tradução. Ao ler uma matéria sobre temas científicos, você também lê uma espécie de tradução. E quando consome material de divulgação científica, como este texto, acaba tendo contato com um material que acaba também produzindo conhecimento — e não apenas traduzindo-o para você. Por isso, mande um abraço para um divulgador científico.

Existem vários desafios a serem enfrentados em se criar um material de divulgação científica. Um deles é tornar um texto acadêmico “mais leve”, mas sem perder a correção conceitual [2] e nem apelar para o sensacionalismo que atrai cliques, mas pouco ou nada informa a respeito do que é apresentado. Os diversos tipos de formato — textos, vídeos, podcasts, infográficos, entre outros — podem ser utilizados, cada um a seu modo, para divulgar o conhecimento científico.

O xkcd é um dos clássicos em divulgação científica. Descrito por seu criador, Randall Munroe, como “um webcomic de romance, sarcasmo, matemática e linguagem”, o site utiliza quadrinhos minimalistas para discutir as relações entre os cientistas, resultados de pesquisas científicas e responder às perguntas nem sempre comuns feitas pelos leitores. O estilo do xkcd é tão inconfundível e marcante que existem fontes para computador no estilo gráfico de Munroe (clique aqui para baixá-las para o seu computador).

Aproveitando o estilo de Munroe, a cosmóloga Claire Lamman, do Center of Astrophysics de Havard, transformou o seu preprint “Intrinsic Alignment as an RSD Contaminant in the DESI Survey” (algo como: Alinhamento Intrínseco como Contaminante RSD [desvio para o vermelho] na Pesquisa (com o) DESI [o DESI é um acrônimo para Instrumento Espectroscópico de Energia Escura]) originalmente publicado assim….

Reprodução: LAMMAN, et. al 2022

Em um texto assim:

Reprodução: LAMMAN, 2022

A adaptação de Claire ao seu próprio trabalho é uma interessante união entre ciência, criatividade e divulgação científica. Aproveitando as sessões usuais de um artigo científico (título, introdução, desenvolvimento, resultados e conclusão), a cientista praticamente reescreve o seu texto simplificando a sua linguagem para que outros públicos possam compreender o que foi estudado, como o estudo foi feito e as consequências para o conhecimento científico de sua área. Aquele título imenso e com significados que são legíveis apenas para quem está familiarizado com os termos da área de cosmologia ficou muito mais simples de ser entendido: “Galaxies point at each other and mess up measurements of the Universe”, ou: “Galáxias apontam umas para as outras e atrapalham as medições do Universo”. Inclusive, muito simpática a forma como isso é ilustrado, não?

Reprodução: LAMMAN, 2022

As ilustrações sobrepostas ao texto original são absolutamente úteis para ajudar na interpretação dos dados. Provavelmente, mesmo que você não trabalhe com pesquisas na área de cosmologia vai conseguir compreender que o estudo realizado por Claire apresentou resultados que divergem do que previa a teoria conhecida até então.

Reprodução: LAMMAN, 2022, p. 10

Cientistas são convidados (e pressionados) a divulgarem o seu trabalho científico para outros públicos além de suas áreas de estudo. De fato, essa não é uma atividade simples de ser feita. Por isso a ideia de explicar o um artigo científico utilizando o estilo do xkcd foi genial, Claire!

Tanto o preprint [3] quanto a sua reescrita no estilo xkcd [4] estão em inglês. Certo, o idioma pode ser uma barreira, mas como ambos podem ser traduzidos com a ajuda de sites específicos que coletam seus dados de uso e com os quais você não consegue viver sem (sim, Google Tradutor, estou olhando para você!).

O preprint em si discute possíveis fontes de erros na medição da distribuição de matéria pelo universo quando se usa o DESI, cujo projeto prevê o mapeamento dos últimos 11 bilhões de anos do universo. O que se concluiu é que o alinhamento entre as galáxias pode ser um fator de contribuição para erros de medida em grandes escalas utilizando o DESI. Conhecimento científico também se faz minimizando (ou, pelo menos, conhecendo) as possíveis fontes de erros.

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Lembrando que o xkcd tem a melhor dica para quem vai defender um trabalho científico.

Randall Munroe/xkcd

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[1] PAGLIOCHI, J.A. et al. Investigação dos processos de transposição didática interna e externa do conteúdo “Misturas” para o ensino médio. ACTIO: Docência em ciências. Disponível em: https://periodicos.utfpr.edu.br/actio/article/view/10859

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