Quando o apocalipse não chega

“O fim está próximo! Arrependam-se! Arrependam-se!” — Lisa Simpson

Escrever sobre o fim do mundo justo no dia em que um astrônomo russo (spoiler: o dito cientista não existe) jurou que a Terra sofreria o impacto de um asteroide que extinguiria a vida no planeta se assemelha com aquela cena em que Frank Drebin pede para que as pessoas dispersem, já que não há nada demais para ver.

Até este momento, o mundo não acabou. E provavelmente, não acabará tão cedo, se levarmos em conta, claro, as probabilidades ligadas aos fenômenos naturais conhecidos pela ciência. Mas ainda assim, sempre há alguma profecia ou descoberta científica deturpada sendo propagada aos quatro ventos que anuncia — com data e tudo — o fim do mundo. Ou da civilização. Ou das tecnologias digitais. Ou do escanteio curto (se bem que tenho minhas dúvidas se isso seria algo trágico).

Mas por que o fim do mundo atrai tanto a atenção das pessoas? Bem, o fim faz parte do ciclo de vida como conhecemos; todos os seres nascem e morrem algum dia e, partindo dessa premissa, o nosso planeta, nossa galáxia, o nosso universo passarão pelo mesmo ciclo de nascimento e de morte. A premissa é válida, mas não pelos mesmos motivos: nosso universo não é organismo vivo, e portanto, não pode simplesmente “morrer” em decorrência de alguma doença. Seria necessária uma catástrofe para que isso acontecesse, o que até o momento, não é tão plausível quanto… O fim de nosso mundo. Afinal, extinguir a vida na Terra é algo relativamente mais simples: basta a Terra entrar no caminho de um asteroide e pimba! Lá se foi a vida no planeta. Só que as coisas não são tão simples assim.

Em primeiro lugar, nós só sabemos que algum corpo celeste está em nossa direção porque tem alguém estudando o espaço. Em outras palavras: graças aos programas de pesquisa espacial, conseguimos catalogar e monitorar com relativa antecedência qualquer impacto que coloque em risco a integridade da vida que possa acontecer em nosso planeta. Afinal, a todo instante nós somos atingidos por milhares de astroides que acabam se destruindo por conta do atrito com a nossa atmosfera. Você geralmente os chama de estrelas-cadentes e vez ou outra, faz um pedido para elas. A questão é determinar quando é que um asteroide potencialmente perigoso pode bater de frente conosco.

A lista dos asteroides potencialmente perigosos é relativamente extensa e pode ser consultada aqui. O nível de periculosidade de um astroide é medido pela escala de Turim, que a partir das dimensões do corpo celeste e na probabilidade de colisão e atribui um nível, que vai do nível 0 (branco) — nenhum risco iminente, ao nível 10 (vermelho) — colisão global capaz de alterar todo o clima do planeta causando catástrofes em nível mundial.

Observe que os asteroides mais perigosos têm diâmetro acima de 100 m e probabilidade de impacto acima de 1%. O 2016WF9, o suposto asteróide que nos mataria hoje, foi descoberto em 2012. Com 11 km de diâmetro, tinha uma probabilidade de impacto em torno de 2%, alta o suficiente o portanto, para ser considerada. À época, estimava-se a sua passagem próximo ao nosso planeta por volta de setembro deste ano. Baseado nisso ou não, o Daily Mirror anunciou a história do suposto astrônomo russo que determinou que o fim do mundo viria bem antes do carnaval de 2017.

A trajetória do 2016 WF9 em 16 de fevereiro

Como é perceptível, o asteroide não nos acertou, o mundo não acabou e ainda estamos longe de acabar com a praga do escanteio curto. Mas as especulações sobre o fim do mundo provocado por algum evento cataclísmico ganham tal força que mudam a rotina de comunidades inteiras.

Uma destas situações aconteceu em 1910, ano da passagem do cometa Halley por nosso planeta. A espectroscopia havia chegado ao desenvolvimento dos primeiros espectroscópios em 1859, graças ao trabalho de Gustav Kirchhoff e Robert Bunsen, o que propiciou o estudo da composição de diversos objetos, incluindo os corpos celestes. Basicamente, a espectroscopia analisa a luz refletida por um corpo ou substância para determinar a sua composição química. Utilizando a técnica para determinar a composição química do Halley, descobriram que a sua cauda continua traços de cianeto de potássio — substância altamente tóxica para o corpo humano. A quantidade de cianeto de potássio identificada na cauda do cometa era inofensiva e sequer passaria pela atmosfera da Terra. Mas a notícia se alastrou com rapidez e gerou uma onda de pânico inédita para um evento natural.

O fim do mundo provocado pelo cometa Halley virou notícia. Um dos primeiros virais de cunho científico?

Máscaras de gás e até pílulas para evitar a contaminação foram vendidas a rodo para pessoas incautas que procuravam fugir de um risco que nunca existiu. E o Halley ganhou a cultura popular mundial. Em sua segunda passagem no século XX, em 1986, quase não se viu o cometa — a próxima oportunidade será em 2061.

Outra situação que parou o mundo — e provocou altas confusões, maiores do que a daqueles filmes da Sessão da Tarde — foi a profecia de Nostradamus que previa o fim do ano no último eclipse do século XX, este especificamente ocorrido em agosto de 1999. Michel de Nostradamus foi um médico francês que viveu no período da Renascença; praticante da alquimia, publicou “As Profecias”, obra composta de versos agrupados em quatro linhas (quadras), organizados em blocos de cem (centúrias) que algumas pessoas acreditam que ser previsões codificadas do futuro. Especificamente sobre o eclipse do fim do século XX, Nostradamus escreveu:

Em 1999 e sete meses,
do céu virá um grande rei do terror.
Ressuscitará o grande rei D’ANGOLMOIS.
Antes que Marte reine pela felicidade.

As interpretações divulgadas pela imprensa desencadearam uma onda de pessimismo e de temor quando a continuidade de nossa existência. O jornal O Estado de S. Paulo noticiou como “último eclipse” mudou a rotina no Piauí:

No Piauí, houve registro de dois suicídios, as igrejas registraram um grande aumento de frequentadores e escolas abonaram faltas dos alunos. No Rio de Janeiro, a irreverência, não o temor, dominou a data e cariocas organizaram festas para o “último dia”.

Como sabemos, o mundo não acabou no dia do último eclipse nem um pouco depois dele.

Grande parte do temor de nossa cultura a respeito da queda de asteroides e do fim do mundo se deve a interpretações errôneas somadas ao misticismo sobre o fim dos tempos e uma pitada da falta de conhecimento à respeito das ciências que ainda é persistente na vida das pessoas. O avanço da ciência fomentou o imaginário popular sobre os mudanças sociais consequentes do avanço tecnológico e científico. Como fruto, as grandes distopias da literatura mundial — “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley (1932) e “1984”, de George Orwell (1948) — nasceram sob esse cenário de expansão da ciência e da tecnologia. Hoje discutimos com muita seriedade o que é parte da realidade e o que é parte da ficção. Aliás, a ficção científica propiciou momentos de pânico e de medo quando as transmissões de rádio anunciavam invasões alienígenas e quedas de astroides gigantescos sobre o nosso mundo. Foi assim nos EUA, em 1938 e em 1971, no Maranhão.

Em termos gerais, o fim do mundo está 21 vezes atrasado. De profecia em profecia, o mundo vai sobrevivendo e a menos que a gente destrua tudo antes, vamos finalmente sucumbir quando o Sol começar a queimar o hélio presente em seu núcleo — coisa prevista pra começar a acontecer em uns 4 bilhões de anos. Até lá, o mundo continua a sua órbita. Fica a dica para melhorar a nós mesmos.

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