Falar a respeito de ciências da natureza — e de todas as áreas da ciência, como um todo — precisa ir além da simples exposição de conceitos e suas relações com expressões ou conceitos matemáticos. Essa não é uma constatação óbvia, tampouco redundante: muitos problemas que enfrentamos no ensino de ciências da natureza, como apontam os seminais trabalhos de Fourez [1] e de Gil-Perez et al [2] e em outros estudos na área, como este de Junges e Tobias [3]¸estão relacionados com o excesso de matematização dos conteúdos e com discussões sobre ciências e o trabalho científico sujeira a uma série de deturpações que podem contribuir para as visões de uma ciência neutra e, em alguns casos, da ciência como objeto de sua própria negação.
Assim, seria de grande importância conseguir identificar caminhos para que este cenário possa ser modificado. Algumas propostas tentam reproduzir pequenos aspectos da prática e da cultura da ciência com a justificativa de promover o protagonismo de alunos de todas as idades. Contudo, este tipo de protagonismo é discutível, principalmente se levarmos em conta que o tal protagonismo se torna um sinônimo de atividade prática; não são raros os casos em que atividades investigativas que tentam reproduzir uma investigação científica não trazem, por exemplo, a liberdade para a definição do que será pesquisado nem a necessidade de se interpretar resultados e discuti-los com seus pares. Além disso, a falta de estrutura física nas escolas — onde se inclui, claro, a falta de tempo e de espaço para a realização de atividades distantes do ensino tradicional — requer que pensemos em alternativas viáveis para que o ensino de ciências da natureza contemple justamente o caráter humano que é uma das características do conhecimento científico.
Uma das alternativas para que o conhecimento científico, de qualquer área, seja discutido dentro de uma perspectiva de construção humana, com aspectos culturais próprios e cujas influências são visíveis em inúmeros momentos de nossa história. É possível recorrer a materiais gratuitos, como a Wikipédia, os planos e sequências investigativas disponibilizadas no OER [4], os textos do The Nobel Colection [5], ou ainda, ao Calendário Científico Escolar.
O Calendário é uma interessante iniciativa proposta pelo IGM (Instituto de Ganaderia de Montaña) e da Universidade de León, ambas instituições sediadas na Espanha. Disponibilizado em acesso aberto desde 2020, a iniciativa foi traduzida para onze idiomas — entre eles, o português desde 2022 — e conta, além de 365 efemérides relacionadas com a ciência e a tecnologia em todo o mundo, materiais de apoio adaptados para o ensino fundamental e para o ensino médio. Tudo acessível gratuitamente pelo site do projeto, onde é possível baixar o arquivo do Calendário Científico Escolar. Além do Calendário, as efemérides diárias são postadas nas redes sociais (Twitter e Mastodon) além do canal no Telegram que envia as efemérides gratuitamente para os participantes.
Tive a honra (e a sorte) de ter participado da tradução da edição em língua portuguesa do Calendário Científico Escolar desde a sua primeira edição para o nosso idioma. Uma das coisas que mais me encanta neste projeto são as efemérides: elas contemplam cientistas dos mais diversos grupos sociais e das mais diversas áreas do conhecimento. Isso permite conhecer muito sobre o desenvolvimento histórico da ciência, indo além dos nomes mais conhecidos para citar pessoas de todo o mundo cujo trabalho trouxe importantes contribuições para o desenvolvimento científico. De meninas do Afeganistão a cientistas árabes, de inventores latino-americanos a cientistas da África e da Ásia: é possível conhecer o trabalho inovador de muita gente apenas lendo as efemérides diárias do Calendário Científico Escolar. A representatividade um aspecto sensacional do Calendário!
Usar o Calendário Científico Escolar em sala de aula não requer nenhuma especificidade obrigatória. Aliás, aqui entra muito mais um trabalho de criatividade do professor em instigar o espírito investigativo de seus alunos ou simplesmente apresentar uma efeméride sobre ciência e tecnologia em um dia específico. Vale a pena começar as aulas comentando a respeito da efeméride do dia, por exemplo. As atividades sugeridas para a sala de aula contemplam desde a investigação sobre a história dos personagens do Calendário até a investigação sobre as suas ideias e impactos no conhecimento científico.
Não é uma solução para os problemas que o ensino de ciências enfrenta, claro. Mas é um caminho interessante apresentar a ciência como uma construção tão humana quanto qualquer outra manifestação cultural que conhecemos. Isso não diminui em nada o valor da ciência: pelo contrário, permite que ela seja compreendida muito mais por seu caráter de construção coletiva de conhecimento (que pode, inclusive, alimentar o debate sobre quais são os interesses que alimentam essas discussões) do que por epifanias e acessos de genialidade individual que muitas vezes são transmitidos quando recorremos apenas aos nomes mais conhecidos da ciência.
E por que o Calendário é uma forma de discutir — e até desenvolver — pontos importantes da cultura científica? Porque abre a oportunidade para que aspectos históricos e sociais de cientistas ou de tecnologias sejam apresentadas, discutidas e até investigadas. Além disso, permite que temas de ciência possam ser discutidos entre os alunos, buscando consensos ou novos caminhos investigativos sobre um assunto. E por último, pode indicar aos alunos o quanto a atividade científica foi (e é) impactada por mudanças, expectativas e pressões de grupos da sociedade (afinal, por que discutimos tanto sobre a ciência desenvolvida na Europa e pouco falamos sobre o que é feito em outros continentes? [6]
Você pode baixar o Calendário Científico Escolar gratuitamente na página do projeto (clique aqui para a edição em língua portuguesa) e obter maiores informações sobre as efemérides e seu uso em sala de aula no repositório do GitLab do Calendário.
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Em tempo: além do Calendário Científico Escolar, você pode baixar gratuitamente o calendário de mesa do ccult.org. Basta clicar aqui para baixar a sua cópia gratuita!
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[1] FOUREZ, G. Crise no ensino de ciências? Investigação em Ensino de Ciências. 2003. Disponível em: https://ienci.if.ufrgs.br/index.php/ienci/article/view/542/337
[2] GIL-PEREZ, D. et al. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação. 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ciedu/a/DyqhTY3fY5wKhzFw6jD6HFJ
[3] JUNGES, A L.; ESPINOSA, T. Ensino de ciências e os desafios do século XXI: entre a crítica e a confiança na ciência. Caderno Brasileiro de Ensino de Física. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/74901
[4] Leia mais em: https://ccult.org/conheca-o-oer-um-repositorio-aberto-de-recursos-educacionais-de-todo-o-planeta/
[5] Leia mais em: https://ccult.org/the-nobel-collection-e-outras-iniciativas-de-divulgacao-cientifica-por-pesquisadores-para-o-publico-escolar/
[6] Sobre este tema, é útil ler o livro “Descobertas Perdidas”, de Dick Teresi. Nele, o escritor italiano revisa temas de ciência que foram discutidos muito antes por civilizações distantes do continente europeu, embora cientistas da Europa tenham recebido todo o crédito.
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