Há quem defenda que o conhecimento científico seja neutro por sua própria natureza. Para estes, a ciência, sua prática e os seus resultados anulam qualquer motivação, viés ou pretensão de quem faz uma pesquisa científica, especialmente quando se fala de ciência básica — aquele tipo de conhecimento científico que não está diretamente envolvido no desenvolvimento tecnológico.
Contudo, perceber a ciência sob o ponto de vista de sua pretensa neutralidade, da absoluta ausência da interesses econômicos, políticos ou sociais que uma pesquisa científica possui é ignorar a natureza humana presente na busca deste tipo de conhecimento. Cientistas não estão — e nem deveriam estar — imunes a influências sociais que permeiam suas vidas e a sua própria relação com a ciência: instituições de pesquisa e pesquisadores não estão em uma Castália de Hesse e é importante que os todos recordem disso.
O disclaimer acima é importante para apresentar o livro “Um Império de Gelo: Scott, Shackleton e a Idade Heroica da Ciência na Antártica” de Edward J. Larson (L&PM Editores, 2017, 352 páginas, tradução de Camila Werner). Longe de apenas narrar os feitos dos primeiros exploradores da Antártica no começo do século XX, a obra discute o que para o autor seriam as verdadeiras motivações para as expedições britânicas ao continente gelado: a busca pelo conhecimento científico sobre os mais diferentes campos da ciência e da tecnologia.
Este é um argumento que Larson consegue defender muito bem, apresentando dados, documentos e o contexto social e político da época e a sua relação com as motivações para que cada expedição acontecesse. Já no primeiro capítulo, “Três Vivas Para os Cães”, o autor discute o contexto da chegada da primeira a chegar no solo do continente antártico. Liderada pelo norueguês Roald Amundsen, a expedição venceu a corrida que daria ao vencedor o reconhecimento de ser o primeiro a chegar no Polo Sul. E o fez utilizando trenós puxados por cães, ao contrário da expedição concorrente, liderada por Robert Scott, que contava com uma estrutura material e humana maior do que a que norueguesa. O interessante aqui não está na chegada de Amundsen no Polo Sul, e sim, as consequências do feito: uma briga diplomática por conta de comentários sobre o feito de Amundsen e os prêmios de consolação defendidos pelos britânicos: afinal, Scott havia coletado importantes informações sobre o clima, geologia e a biologia marinha do continente.
Desta forma, a chegada ao Polo Sul Geográfico passou a ser algo colocado à margem do que passou a ser o grande objetivo das explorações seguintes: levantamento de dados, coleta, observações, medidas e toda sorte de feitos que tinham relação com a ciência. Utilizando um texto fluido apesar do grande número de informações que apresenta, o autor consegue fazer o leitor “ver” além dos feitos heroicos: há aqui a descrição da importância dos conhecimentos científicos que puderam ser pesquisados nas expedições. Muitos deles acabaram interferindo decisivamente em muitos campos de pesquisa científica e em tecnologias essenciais para o mundo. O livro apresenta diversos exemplos e destaco um em especial: a tentativa de se determinar a exata localização do Polo Sul Magnético da Terra. A “Cruzada Magnética” foi um resultado de múltiplos esforços que foram potencializados, de acordo com o autor, pelas mudanças geopolíticas — o Império Prussiano começava a ameaçar o domínio britânico — e pelos diversos interesses políticos dentro da Grã-Bretanha naquela época. Nas mais de trinta páginas do capítulo sobre o tema, Larson exibe os relatos, mapas originais e as expedições que tentaram chegar até o crucial ponto magnético da Terra. Com as medidas feitas sobre o campo magnético terrestre durante as expedições — e após também, claro — tivemos condições de melhorar a tecnologia de navegações muito antes da existência do sistema de posicionamento por satélites. A independência das condições climáticas, como bem apontou Larson nos capítulos três e quatro, era uma vantagem especial em termos de localização.
A edição em língua portuguesa de “Um Império de Gelo” é dividida em oito capítulos, além do epílogo e de um robusto índice remissivo e notas — que talvez fossem mais bem localizadas se estivessem no rodapé das páginas e não no final do livro. Mas esse é um detalhe que não minimiza a qualidade do texto de Edward Larson. A riqueza de detalhes não parece sem sentido. Ao contrário: ela demarca os pontos em que a ciência e a sociedade se relacionam em um ambiente de dependência e de influência mútua, que ao contrário do que nossos tempos fazem parecer, já existia antes do grande salto que a ciência deu nos últimos cem anos.
Os capítulos são relativamente independentes entre si, isto é, não seguem necessariamente uma ordem cronológica. Isso é interessante para quem deseja utilizar, por exemplo, o livro em sala de aula: apesar de alguns capítulos serem relativamente extensos (estamos falando de uma obra com mais de trezentas páginas), é perfeitamente possível selecionar trechos para a leitura e discussão em sala em uma aula introdutória ou como parte de uma sequência didática mais longa. O livro de Larson oferece uma possibilidade ímpar de se discutir a relação entre a ciência e a sociedade não como um plano de fundo, mas como um dos atores da própria história humana contemporânea.
O livro “Um Império de Gelo: Scott, Shackleton e a Idade Heroica da Ciência na Antártica” está disponível em formato físico no site da editora e nos principais marketplaces do Brasil.
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