Uma citação do matemático húngaro Paul Erdös talvez seja a melhor analogia entre máquinas e seres humanos: “um matemático é uma máquina que transforma café em teoremas”. Se estendêssemos a analogia de Erdös aos cientistas de modo geral, dá para cravar que “cientistas são máquinas de transformar café em explicações”.
Buscar explicações é parte do que nos torna humanos. Portanto, não é exclusividade dos cientistas ter curiosidade sobre o mundo que nos cerca nem buscar explicações. Se em algum momento de sua vida você já conviveu com crianças, sabe que elas fazem todo tipo de pergunta sobre o que veem, ouvem e sentem. Os adultos continuam a fazer essas perguntas, mas geralmente o fazem em voz baixa ou terceirizam para algum algoritmo de busca ou rede social.
Então, se todo mundo é curioso, todo mundo pode ser considerado um cientista? Depende. Um dos critérios de demarcação para separar o conhecimento científico é a sua capacidade de superação, isto é, uma vez encontrada uma teoria mais abrangente, a anterior é abandonada. Ao contrário do conhecimento científico, o conhecimento que obtemos por senso comum é resistente a mudanças, mesmo sob instrução formal [1], então, é difícil “desapegar” daquilo cuja explicação nos parece satisfatória (essa é uma das razões pelas quais para muita gente é irresistível pensar que a queda livre dos objetos é um movimento dependente da massa dos objetos envolvidos, quando justamente ela é independente da massa).
Considerado o pai do montanhismo, o físico suíço Horace-Bénédict de Saussure foi um daqueles curiosos que tentou dar vazão a sua inquietação retroalimentando-a. Aproveitando a sua curiosidade e o fato de ser membro de uma família com muito dinheiro, Saussure ofereceu um prêmio em dinheiro para quem conseguisse atingir o cume do Mont Blanc — tudo porque ele gostaria de saber a altitude da montanha. Com uma carreira acadêmica meteórica, Saussure foi nomeado professor de filosofia da Universidade de Genebra em 1762, com 22 anos de idade.
Mais do que ensinar filosofia e ciências [2] para pessoas com pouco menos de sua idade, Saussure desenvolveu formas de medir tudo o que fosse possível. Inventou um higrômetro de absorção que utiliza pelos de cavalo para medir a umidade do ar atmosférico [3], um anemômetro — dispositivo utilizado para medir a velocidade dos ventos — e um magnetômetro (cuja função é medir a intensidade do campo magnético em alguma região). Além disso, realizou importantes estudos a respeito do lapso atmosférico, que consiste na variação de temperatura em função da altitude em relação ao solo. Tudo isso fazia sentido: o cientista suíço conduzia as suas pesquisas nos atuais campos da geologia, biologia e meteorologia e dependia das medições realizadas enquanto cruzava vales e picos na França e na Suíça.
Enquanto subia cada vez mais alto, Saussure percebeu algo interessante: a medida em que a sua altitude aumentava em relação ao solo, a cor do céu mudava para tons de azul cada vez mais escuros. Mas como medir esses tons se nem ao menos uma explicação para a cor do céu tinha sido desenvolvida a época? O cientista resolveu esse problema criando uma escala de cores, o cianômetro, uma escala circular com cinquenta e duas divisões pintadas à mão com vários tons de “azul prussiano”, que iam do zero (branco) até o preto.
De posse de seu cianômetro, Saussure finalmente escalou o Mont Blanc em 1787. Demorou três dias para que ele e seus dezoito guias chegassem ao cume, onde o cientista suíço mediu tudo o que conseguiu [4], incluindo o tom de azul do céu (cujo valor máximo obtido foi de 39 em sua escala). No ano seguinte, Saussure coordenou medições meteorológicas coordenadas em outras regiões, como auxílio de outros pesquisadores. Era o início da meteorologia comparativa, um avanço significativo para a ciência da época.
O valor máximo obtido na escala de Saussure para o seu cianômetro foi medido durante a passagem do naturalista alemão Alexander von Humboldt pelo Andes, no vulcão Chimborazo [5]: Humboldt obteve 46° na escala de azul.
Entretanto, o cianômetro proposto por Saussure caiu rapidamente em desuso pela comunidade científica. Além da subjetividade para a determinação do tom de azul tanto na escala quanto em comparação com o céu — embora a escala tivesse a pretensão de ter um rigor científico incomum para a época —, e apesar de Saussure defender a ideia de que as cores do céu eram um fenômeno óptico, a correta explicação para os diferentes tons de azul encontrados na atmosfera terrestre só conseguiu ser apresentada por volta de 1860: trata-se da dispersão da luz do Sol em nossa atmosfera, como já discutimos aqui [6] e que o físico e astrônomo inglês James Jeans apresentou de forma espetacular no curto ensaio “Why the Sky is Blue” [7].
Mesmo sem uso sob o ponto de vista científico, o cianômetro de Saussure é um interessante recurso para nos lembrar a respeito da curiosidade humana e, sobretudo, sobre aquilo que podemos aprender sobre o que está ao nosso redor. Do ponto de vista da ciência, a evolução teórica é uma das chaves do avanço científico — não há dogmas, por mais belos tons de azul que ele possa ter. Atualmente, nossas medidas da cor dependem das medidas de frequência da luz emitida, o que torna o processo muito mais preciso, objetivo e mensurável.
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[1] Como discutido no artigo de Germano e Kulesza (2010), “Ciência e senso comum: entre rupturas e continuidades”. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/2175-7941.2010v27n1p115
[2] A distinção entre a filosofia e as áreas da ciência só se estabeleceu a partir do século XIX. Por isso, os filósofos conduziam pesquisas nas áreas de Física, Astronomia, Química, Biologia, Matemática, entre outras.
[3] Leia mais em: http://museu.fis.uc.pt/72.htm
[4] O que incluiu a medida da altitude do cume, obtendo o valor de 4775 m (o valor atualmente aceito é de 4807 m)
[5] O vulcão Chimborazo fica no Equador e é a montanha mais alta da Terra levando em conta a sua distância até o centro do planeta: https://pt.wikipedia.org/wiki/Chimbora%C3%A7o
[6] O arco-íris e a composição das estrelas
[7] Disponível em: http://richardcolby.net/btw/wp-content/uploads/2016/03/Why-the-Sky-is-Blue.pdf
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