Schwarzschild, guerra e a relatividade geral

Renato Russo e a sua inesquecível Legião Urbana cantavam contra os senhores da guerra nos versos de “A Canção do Senhor da Guerra”. Guerras expõem o pior lado humano possível e invariavelmente resultam em inocentes feridos e mortos, sequelas que duram gerações e algum desenvolvimento tecnológico. Talvez a melhor definição sobre o que representa uma guerra tenha sido dada pelo dramaturgo alemão Karl Krauss: “A guerra, a princípio, é a esperança de que a gente vai se dar bem; em seguida, é a expectativa de que o outro vai se ferrar; depois, a satisfação de ver que o outro não se deu bem; e finalmente, a surpresa de ver que todo mundo se ferrou.”

E neste cenário em que todos os lados envolvidos em uma guerra sofrem algum tipo de perda, soa inacreditável pensar nas contribuições que Karl Schwarzschild trouxe para a astrofísica e física estelar enquanto servia voluntariamente no exército alemão durante a primeira guerra mundial.

Único de seus seis irmãos a seguir a carreira científica, Schwarzschild desenvolveu cedo o seu gosto por astronomia. Antes dos quinze anos de idade, já havia conseguido construir o seu telescópio e, graças ao intermédio de seu pai, Moisés Martin Schwarzschild, fez uma profunda amizade com o filho de J. Epstein, Paul Epstein (se você acha que conhece o nome de Paul Epstein de algum lugar, provavelmente você esteja correto: Epstein trouxe contribuições significativas à teoria dos números em Matemática).

Aos dezesseis, já havia publicado seus primeiros artigos científicos na Astronomische Nachrichten em 1890 [1].

No ano seguinte de suas primeiras publicações, Karl Schwarzschild deu início a sua formação acadêmica, concluindo com o doutorado em 1896, na Universidade de Munique, com a tese sobre as aplicações da teoria de Henri Poincaré de configurações estáveis de corpos rotativos e deformação das luas.

Karl Schwarzschild tinha uma capacidade peculiar para o assombro: ainda adolescente, ele desmontou todo o sistema de cordas de um piano apenas para compreender qual era a lógica para a geração do som pelo instrumento (e se você também ficou curioso sobre qual a contribuição das cordas para o som do piano, assista a este vídeo). Mais tarde, já na vida adulta, escreveu para seu irmão Alfred a respeito do eclipse solar que observara: “quão estranho é o espaço e quão temperamentais as leis da óptica e da perspectiva, que permitem ao menor dos meninos tampar o Sol com seu dedo” [2].

Karl Schwarzschild | Wikipédia

Logo após — precisamente um dia — completar vinte e oito anos de idade, Schwarzschild tornou-se o professor universitário mais jovem da Alemanha, assumindo um cargo no Observatório Kuffner, na Áustria, trazendo importantes contribuições para a espectroscopia. Dois anos depois, em 1899, Schwarzschild torna-se professor na Universidade de Monique, onde permanece por dois anos, quando vai para a Universidade de Göttingen atuar como professor e diretor do observatório. Foi em Göttingen que Schwarzschild trabalhou com pesquisadores de renome mundial, como David Hilbert, Felix Klein e Hermann Minkowski.

Em 1905, durante uma viagem para a Argélia, danificou definitivamente a córnea de seu olho esquerdo por não respeitar o tempo máximo de observação sem o uso de equipamentos adequados — por isso, observar eclipses do Sol exige utilizar equipamentos adequados para que o evento seja admirado com segurança. Ao contrário do que seus amigos e colegas poderiam esperar, Schwarzschild aumentou a sua produção de artigos e seus temas de pesquisa se espalharam por tudo aquilo que mexia com a sua curiosidade. Seu dinamismo era tão grande que Arthur Eddington — um dos maiores entusiastas da relatividade de Einstein e diretor da missão de observação que acompanhou o eclipse de Sobral [3], em 1919 —certa vez o comparou a um líder de guerrilha, pois “seus ataques caíam onde menos se esperava e sua voracidade intelectual não conhecia limites, mas incluía todos os âmbitos do conhecimento” [2]. Sua voracidade em pesquisar era intensa a ponto de improvisar, sem qualquer cerimônia, seus equipamentos. Quando descobriu, em 1910, que as estrelas tinham diferentes cores, o fez utilizando uma câmera apoiada na vassoura do zelador do Observatório de Potsdam. Em Göttingen, o inventário de equipamentos deixados após a sua saída revelou que Schwarzschild colocara uma transparência da Vênus de Milo, de tal forma que os braços da medusa fossem delineados pela constelação de Cassiopeia.

Vênus de milo (esquerda) e a constelação de Cassiopeia (direita) | Imagens: Wikipédia

O próprio Schwarzschild assumia a sua presença nos mais diversos campos, que iam além de formação em astronomia: “Frequentemente fui infiel aos céus. Meu interesse nunca foi limitado às coisas que se situam no espaço, para além da Lua, mas segui os fios que se tecem dali até as zonas mais obscuras da alma humana, já que é para lá que devemos levar a nova luz da ciência”. E seus interesses foram tão amplos que em 1914, aos 41 anos, se voluntariou para o exército alemão. E foi aqui que os caminhos de Schwarzschild cruzaram definitivamente os caminhos de Albert Einstein e a sua teoria da relatividade geral.

No front de batalha, Schwarzschild foi colocado no comando de uma estação meteorológica na Bélgica; posteriormente, atuou na França, em uma unidade de artilharia. Em seu tempo livre, ajudou a desenvolver um sistema para melhorar a precisão dos tiros dos tanques utilizados pelo exército alemão.

Imerso na carnificina da guerra, ele não deixara suas pesquisas. Levando consigo seus cadernos de anotação e de pesquisa. Promovido a oficial, pode ter contato com as últimas pesquisas divulgadas, que chegavam até ele pelo correio de guerra. Foi assim que Schwarzschild teve contato com a Teoria da Relatividade de Einstein, lendo o Proceedings of the Royal Prussian Academy of Sciences e, posteriormente, o artigo onde o cientista alemão apresenta, além da relatividade, as equações de campo da relatividade geral que ainda não haviam sido solucionadas por ninguém.

Ilustração de Karl Schwarzschild no front de batalha | IOP Physics

Em dezembro de 1915, Einstein recebera uma carta [4] em um envelope todo sujo, cujo nome do remetente estava encoberto por uma grande mancha de sangue. Ao abrir a carta, o conteúdo se revelara: Schwarzschild enviara, direto do front da primeira guerra mundial, a sua proposta de solução para as equações de campo de Einstein, dando uma solução simples e elegante para o problema que o próprio Einstein não tinha encontrado até então — e aqui, reside uma das coisas mais interessantes da ciência: a colaboração para diminuir as incorreções ou deixar uma teoria mais abrangente possível [5].

“Como pode ver, a guerra me tratou com suficiente amabilidade, apesar do intenso tiroteio, a ponto de eu poder escapar de tudo e fazer esta breve caminhada na terra de suas ideias”

As soluções propostas por Schwarzschild descreviam a com muita precisão a geometria do espaço-tempo ao redor de um objeto maciço. Em meio as batalhas, gases venenosos e todas as angústias que uma guerra por si só é capaz de promover, Schwarzschild resolveu um problema complexo de uma forma relativamente simples, o que impulsionaria o interesse da comunidade científica sobre o tema — e mais tarde, promoveria Einstein ao status de gênio e ícone pop do século XX.  

Mas além de solucionar as equações de campo da relatividade geral de Einstein, as soluções propostas por Schwarzschild traziam uma nova possibilidade nada trivial: se aplicadas a estrelas ideais (simétricas e com carga elétrica nula), as soluções apontavam que a massa central da estrela deformava o espaço ao seu redor, tal qual uma melancia sobre um lençol esticado. Se estivermos a uma distância suficientemente grande dessa estrela idealizada, o comportamento da gravidade se parece com a previsão newtoniana — a força gravitacional diminuiria a medida em que a distância aumenta [6]. Contudo, se nos aproximamos dessa estrela ideal, o comportamento se assemelha ao que previa a relatividade de Einstein, com a deformação do espaço-tempo ao seu redor. A comunidade científica, ainda cética quanto a relatividade geral, mudou completamente de ideia após o que fora observado em 1919 durante o eclipse de Sobral, com a deformação do espaço-tempo sendo percebida durante o evento. Agora, vem a parte que não é trivial: se a massa central da estrela estiver concentrada em uma área muito pequena e começar a colapsar sob a sua própria gravidade, todo o tecido espaço-tempo ao seu redor se colapsaria junto.

O colapso continuaria à medida em que a gravidade continuasse atuando sobre essa massa concentrada, aumentando a sua densidade até o ponto em que o espaço se tornasse completamente curvado. O objeto resultante seria um enorme atrator celeste, cuja condição é chamada de singularidade de Schwarzschild, ou o famoso buraco-negro.

Ilustração de um buraco-negro | Eniscuola

Schwarzschild não aceitava esse resultado bizarro [7] e gerou mais alguns volumes de seus cadernos de anotações [8], deduzindo a singularidade própria de cada objeto, isto é, qual é o raio mínimo que algum objeto celeste deve ter antes de colapsar sobre si mesmo. Para o Sol, esse raio é de pouco mais de três quilômetros; para a Terra, cerca de oito milímetros. Isso quer dizer que se você quiser criar um buraco-negro com a Terra, basta comprimi-la em um tamanho de uma bolinha de gude. Legal, né?

No mesmo dia em que enviou a sua solução para as equações de Einstein, Schwarzschild enviou uma carta para a sua esposa, Else Posenbac, contando a ela sobre “uma força irreprimível que escurece todos os meus pensamentos”. Pouco tempo depois, Schwarzschild fora diagnosticado com uma doença genética que à época era incurável: pênfigo, ou gengivite ulcerativa necrosante aguda. O corpo de Schwarzschild começou a reconhecer as próprias células como células invasoras, formando bolhas na pele e nas mucosas que geram dores incapacitantes e compromete as funções vitais do organismo.

Karl Schwarzschild morreu em 11 de maio de 1916, aos 42 anos de idade. Publicou mais de cem artigos ao longo de sua vida, alguns escritos já em seu leito de morte. A genialidade e a curiosidade de Schwarzschild estão eternizadas na história da ciência e podem ser resumidas pelas palavras de Einstein no funeral do cientista:

“Ele lutou contra os problemas dos quais outros fugiram. Ele adorava descobrir as relações entre múltiplos aspectos da natureza, mas o que impulsionou sua busca foi a alegria, o prazer que um artista sente, a vertigem do visionário capaz de discernir os fios que tecem o tecido do futuro.”

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[1] Disponíveis em: https://onlinelibrary.wiley.com/journal/15213994~
[2] LABATUT, Benjamin. Quando deixamos de entender o mundo. Editora Todavia, 2022.
[3] Sobre o eclipse de Sobral, leia: http://www.mast.br/sobral/eclipse.html
[4] https://einsteinpapers.press.princeton.edu/vol8-trans/192
[5] O que nem sempre significa que os cientistas trabalhem sem o espírito competitivo
[6] A previsão newtoniana é de que a força gravitacional diminua com o quadrado da distância. Isso significa que se você aumenta a distância por um fator de dois, ela se reduz em quatro vezes.
[7] E nem Einstein aceitava a existência da singularidade de Schwarzschild. Infelizmente para Einstein, em 1939, Robert Oppenheimer e Hartland Snyder demonstraram que uma estrela, ao consumir todo o seu combustível, se comportaria exatamente como Schwarzschild previra.
[8] O caderno de anotações de Schwarzschild é ilustrativo de como a sua presença na guerra mudou a sua percepção sobre o mundo: de desenhos e palavras sobre a moralidade, paisagens e a vida, para espirais que preenchiam todas as folhas após o cientista (e militar voluntário) observar toda a carnificina da guerra

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