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Percepção de notícias falsas sobre ciência em sala de aula

Talvez alguém no futuro fique alarmado com o fato de o termo “pós-verdade” ter sido escolhido como a palavra do ano de 2016 pelos editores do Dicionário Oxford [1]. A pós-verdade, palavra que define uma afirmação que deturpa deliberadamente a verdade e, que por apelar a crenças em detrimento dos fatos, tende a ser aceita como verdadeira pela opinião pública [2], é um fenômeno complexo e uma chaga de nosso tempo.

A pós-verdade não é só um problema filosófico relacionado a distinção da verdade ou da formação do argumento em uma lógica formal ou informal. Uma das grandes consequências da deturpação de fato é a diminuição da confiança no outro. Qualquer um passa a ser uma fonte de informações incorretas, que precisam ser checadas a todo instante. A confiança, um dos pilares da sociedade, passa a ser uma moeda muito, muito cara e que tem o seu lastro cada vez mais preso as crenças individuais do que aos fatos em si. E como nós, seres humanos, somos seres absolutamente sociais, você já consegue imaginar o tamanho do estrago que a deturpação da verdade e a quebra dos laços de confiança tem sobre nós.

Uma das grandes manifestações da pós-verdade são as chamadas notícias falsas ou fake news. Esse tipo de notícia não é novidade na história humana. É importante dizer que fake news tem propósito: diferentemente de notícias erradas, elas não foram causadas por um erro não intencional; elas corroboram afirmações deturpando os fatos, dados e informações intencionalmente para destruir reputações ou criar histórias e salvadores que não resistem a um olhar minimamente cético.

Notícias falsas não são novidade no mundo, tampouco no meio da ciência e da tecnologia. No fim do século XIX, Thomas Edison espalhava cartazes, anunciando que Nikola Tesla “não era um homem decente” e que a invenção da corrente alternada — que mudaria para sempre a forma como a eletricidade seria transmitida — era “insegura e assassina” [3]. Tudo para derrubar a reputação de Tesla e manter o seu próprio sistema de corrente contínua como o mais utilizado. Mais recentemente, em 1998, o médico inglês Andrew Wakefield publicou o seu estudo — amplamente refutado desde então — em que afirmava existir uma relação entre a vacinação contra o sarampo e o autismo em crianças. Apesar dos erros metodológicos e dos conflitos de interesse de Wakefield [4], os índices de vacinação caíram drasticamente e o movimento antivax ganhou um empurrão para crescer e defender as suas crenças infundadas, como vimos no exaustivamente durante a pandemia de covid-19.

Eletricidade e vacinas. Dois exemplos de tecnologias desenvolvidas a partir do avanço científico e que permeiam o nosso cotidiano. Ciência e tecnologia estão irremediavelmente enraizadas em nossa cultura e em nosso estilo de vida – a chamada sociedade tecnonatural [5]. Portanto, discutir assuntos relacionados a esses dois temas é discutir o mundo ao nosso redor. E isso passa por discutir, inclusive, como nos informamos sobre ele.

Entre 2016 e 2017, conduzi um estudo que é parte integrante de minha dissertação e de meu livro [6]. Sobre a formação da cultura científica em sala de aula. A ideia era verificar como os alunos de ensino médio verificavam informações científicas e quais conclusões chegavam a partir das informações disponibilizadas, dos dados obtidos em suas checagens e de suas análises.

Os alunos foram divididos em grupos de quatro alunos e receberam aleatoriamente uma das quatro informações científicas publicadas em redes sociais e em grandes portais de notícias. Todos os grupos do estudo concluíram que as notícias eram verdadeiras: não foram raras as justificavas a essa conclusão com base na existência da notícia — o que deveria ser óbvio, já que elas realmente tinham sido publicadas. Poucos grupos buscaram justificativas fundamentadas em conceitos ou estudos científicos, embora uma busca um pouco mais refinada pudesse auxiliá-los a encontrar checagens de fatos ou estudos que discutiam os temas apresentados.

Alunos de ensino médio, que diariamente recebiam notícias e informações com temas científicos, não sabiam sequer o que era um artigo científico. Não é que esses alunos não tivessem tido contato com temas científicos anteriormente: é que os temas científicos, em geral, lhes foram apresentados com uma abordagem que prioriza o conceito, como se eles fossem criados em uma espécie de epifania ou geração espontânea sem qualquer vínculo com uma atividade social, de embates, discussões, avanços e retrocessos. Por isso defendo que entender a ciência como uma forma de expressão cultural é entender a ciência de modo mais profundo do que simplesmente alçá-la a um patamar de verdade final. Verdades absolutas não exigem, a princípio, serem compreendidas nem reformuladas. A ciência é uma forma de conhecimento que se leva a sério o suficiente para poder ser compreendida, contestada e modificada. Entender isso é entender por que a ciência deve deter o grau de aceitação e de apoio da sociedade.

Ainda sobre a percepção dos jovens sobre notícias falsas na ciência — e retomemos aqui a ideia de notícias falsas como sinônimo de notícias deturpadas para defender um ideal ou destruir reputações —, um interessante estudo (FAGUNDES et. Al., 2021 [7]) publicado em 2021 mostrou que um grupo de 23 pessoas, entre 20 e 24 anos, tiveram “dificuldade em identificar o que é verdadeiro e em quem confiar quanto tratamos de notícias que circulam pela internet” [7]. E mais: o estudo apontou que um dos critérios mais utilizados pelo grupo estudado para conferir a credibilidade foi o veículo de origem da informação e a predisposição de compartilhar assuntos que corroboram a visão de mundo dos participantes da pesquisa.

Apesar de um grupo focal e dos autores deixarem claro que os resultados do estudo não devem ser estendidos a toda população brasileira, ele traz algumas reflexões importantes sobre o tema ciência e notícias falsas. Em primeiro lugar, a crença ou descrença em uma notícia científica vem, especialmente, da aceitação ou rejeição das conclusões dos estudos frente ao que acreditam ou não ser verdadeiro, ou seja, se suas convicções são ou não reforçadas pelas notícias científicas. Daí, entender que alunos possuem uma bagagem cultural antecessora a sua formação escolar é trivial para lidar com a discussão sobre ciência, métodos e tecnologias em sala de aula.

Em segundo lugar, notícias falsas não tem faixa etária. Todos estão sujeitos a acreditar e a reproduzir uma ou mais informações falsas por anos porque elas reforçam suas crenças sobre o mundo, ou trazem ludicidade ou deturpam os fatos para que eles se encaixem em alguma coisa que nos é mais palpável [8].

Por último, discutir notícias falsas em sala de aula é uma necessidade não só para o aprendizado científico, mas também para o exercício da cidadania. Se é verdade que fake news limam um dos pilares da sociedade, então, mais do que nunca, é necessário fortalecer este fundamento. Ensinar nossos alunos a checar, por si só, assuntos relacionados a ciência e a tecnologia é dar a eles ferramentas para se protegerem ou, ao menos, refletirem sobre o que é apresentado. É como diria o sociólogo espanhol Jose Ortega y Garcez: “ao ensinar, ensina a duvidar do que estiver ensinando”.

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[1] Sobre a escolha do termo “pós-verdade”, vale ler essa reportagem do El País Brasil (RIP): https://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/16/internacional/1479308638_931299.html
[2] A definição completa do termo “pós-verdade” segundo a Academia Brasileira de Letras está disponível aqui: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/pos-verdade
[3] Uma descrição detalhada da rivalidade entre Edison e Tesla está no livro “Rivalidades Produtivas: disputas e brigas que impulsionaram a ciência e a tecnologia”, escrito por Michael White e publicado no Brasil pela Editora Record (2003, 543 páginas).
[4] Detalhes sobre a atuação de Andrew Wakefield na farsa da vacina e autismo podem ser lidos aqui: https://www.bbc.com/portuguese/geral-40663622
[5] FOUREZ, Gerard. A Construção das Ciências. Editora Unesp, 1994.
[6] Para maiores informações sobre o livro “Tendências epistemológicas e a cultura científica em sala de aula”, consulte este link: https://ccult.org/habemus-livro
[7] FAGUNDES, et. al. Jovens e sua percepção sobre fake news na ciência; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 16 (1), 2021.
[8] Em se tratando do ensino de ciências, pode ser relacionada, por exemplo, com a história da maçã de Newton, como discutido aqui: https://ccult.org/os-problemas-das-anedotas-cientificas

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F. C. Gonçalves

Flávio “F. C.” Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.

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