Contar o tempo é uma de nossas atividades mais valiosas. Conseguir quantificar essa contagem, passando da precisão de semanas com as fases da Lua ou das horas com os relógios de Sol para bilionésimos de segundo com os relógios atômicos foi uma façanha e tanto para a nossa espécie.
A nossa relação com as medidas de tempo — e com os relógios, consequentemente — permite o mundo ser o que é. Ou que foi segundos atrás, quando você foi conferir as horas ou quando você associou um determinado horário a algum acontecimento. Os românticos como eu recordam o horário do primeiro beijo nas pessoas que amam, os detalhistas sabem com precisão de segundos o tempo de uma volta de um carro de corrida, as autoridades têm na contagem de tempo um dos limites de sua atuação.
Fato é que contar o tempo é uma invenção humana das mais úteis e das mais universais que temos. Relógios nos dão uma medida que nos permite situar a nossa vida em relação ao que acontece ao nosso redor: a partir da informação de que horas são, conseguimos estabelecer a que tempo estamos de um compromisso, de um acontecimento ou de uma tarefa. Relógios são poderosos instrumentos de informação.
E se os relógios são absolutamente úteis para nos informar sobre o tempo em uma linguagem que possui imensa abrangência cultural, por que não os utilizar como alerta sobre o nosso futuro?
O relógio da meia-noite (ou relógio do apocalipse, caso você prefira um exemplo do efeito Datena) surgiu em 1947 com uma publicação de um grupo de cientistas do Projeto Manhattan [1]. Responsáveis pela produção da primeira bomba atômica utilizada em um conflito, os cientistas que “conheceram o pecado” [2] produziram o Bulletin oh the atomic scientists (ou “boletim dos cientistas atômicos”, em tradução livre) cerca de um mês depois do ataque nuclear ao Japão. Em sua primeira edição, o Bulletin trazia na capa a ilustração de um relógio que marcava 23h48, restando, portanto, doze minutos para a meia-noite. Os riscos que o uso da energia nuclear para fins não pacíficos — como o armamento nuclear em produção pelo próprio Projeto Manhattan — trariam para a sobrevivência humana aproximou a nossa espécie da extinção — indicada pela meia-noite no relógio proposto pelo grupo de cientistas.
Anunciar os riscos decorrentes do uso das armas nucleares rapidamente tornou-se uma prioridade para o grupo. Além de ter cientistas de grande renome assinando a primeira edição do Bulletin, como Einstein, Leo Szilárd e o diretor do Projeto Manhattan, J. Robert Oppenheimer, a primeira edição teve seu formato original modificado, deixando de ser mimeografada [3] e passando a ser impressa. Tudo para atingir o maior público possível e disseminar a mensagem dos riscos e da iminência do possível “juízo-final” autoimposto pela humanidade.
A mensagem da capa foi precisa: a ideia de um relógio em contagem regressiva era fácil de ser compreendida e chamava a atenção para a mensagem sobre o uso da energia nuclear para produzir mortes e destruição [4]. O design da capa foi obra de Martyl Langsdorf, esposa do físico Alexander Langsdorf. Ambos atuaram no Projeto Manhattan.
O “relógio da meia-noite” — que em inglês recebe o nome de “doomsay clock” — tornou-se uma referência cultural presente em músicas, poesias, literatura, jogos e mídia especializada. Ao longo de sua história, o relógio já mudou a contagem diversas vezes; antes, o relógio associava a urgência nuclear com a chance de um conflito potencialmente perigoso para a existência humana, chegando registrar 23h58min no auge da Guerra-Fria e 23h43min em 1991, quando a União Soviética se dissolveu [5].
Agora, outras ameaças potencialmente letais tomaram o lugar o perigo atômico: as mudanças climáticas (que sim, são consenso na comunidade científica) apontam um futuro assustador para a vida na Terra nos próximos anos e os riscos biológicos e da inteligência artificial. Com isso, o doomsay clock teve o desenho atualizado, mas o seu objetivo, essencialmente, continua o mesmo: chamar a atenção para as atividades humanas e suas consequências que podem trazer danos irreversíveis para a vida na Terra.
Com 75 anos de existência, o relógio da meia-noite não é absoluto. Muitas críticas contra o seu uso e a sua dinâmica são feitas desde a época em que ele foi proposto. Algumas envolvem o negacionismo climático e o negacionismo científico e outras, mais sérias, envolvem a sua natureza arbitrária e pouco quantitativa (o que definiria, objetivamente, o avanço de cada segundo do relógio? Os riscos atuais poderiam realmente podem ser dimensionados e comparados com o risco atômico no século XX?). Neste texto, a Physics World, cuja área de atuação engloba os físicos (a mesma área de formação daqueles que criaram da ideia do relógio), argumenta sobre o relativo simplismo que o relógio possui frente ao mundo mais complexo do que aquele de 1947, quando o relógio da meia-noite foi criado.
Talvez, além chamar a atenção para o perigo real da proximidade de nossa extinção, o relógio seja útil para demonstrar o quanto a atuação política de cientistas (e divulgadores científicos, claro) precisa acontecer e ser apresentada de forma clara para o mundo. É relativamente simples visualizar a informação e entender o que significa chegar à meia-noite no contexto do relógio. Seria muito interessante se conseguíssemos dispor de ferramentas que conseguissem trazer à tona discussões tão importantes como questões climáticas ou a contaminação por doenças transmissíveis de forma clara e com a maior precisão possível.
No fundo, o relógio da meia-noite é um marcador temporal sobre a neutralidade da ciência e dos cientistas. Não há nada de errado com ausência de neutralidade. A questão mesmo é que todos deveríamos ser capazes de analisar o avanço do relógio e a precisão de suas badaladas.
. . . . .
[1] Saiba mais sobre o Projeto Manhattan aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Projeto_Manhattan
[2] Essa é uma conhecida afirmação de J. Robert Oppenheimer, diretor do Projeto Manhattan, baseada nos escritos hindus: “nós [os cientistas] sabíamos que o mundo jamais seria o mesmo. Algumas pessoas riam, outras choravam. Mas a maioria permaneceu em silêncio. Me recordei de uma passagem das escrituras hindus, o Bagavad-Gita: tentando convencer o príncipe a concluir suas tarefas, Vishnu assumiu sua forma com vários braços e disse: ‘Agora eu sou a Morte, a destruidora de mundos’. Os físicos conheceram o pecado...”.
[3] Sobre os mimeógrafos, é útil assistir ao vídeo do Manual do Mundo: https://www.youtube.com/watch?v=FkEwfLklGvs
[4] A energia nuclear é o exemplo perfeito de como é importantíssimo discutir como o conhecimento científico interfere em nosso cotidiano: o mesmo uso pode produzir energia elétrica de forma limpa, ao mesmo tempo em que pode produzir destruição e mortes quando utilizada para fins bélicos.
[5] O que é um dos “plantões da Globo” mais profundos de todos os tempos em minha modesta opinião (assista aqui).
Imagem destacada por Bulletin Scientists Atomic .
. . . . .
O ccult.org é um projeto de divulgação científica independente sobre temas de cultura científica e ensino de ciências da natureza criado e mantido por F. C. Gonçalves desde fevereiro de 2019. Conheça o projeto.
Você pode contribuir financeiramente com o ccult.org. A partir de R$ 1 por mês, você ajuda o projeto a crescer cada vez mais, recebe brindes especiais e ainda concorre a prêmios exclusivos! Acesse: apoia.se/siteccult e saiba mais.
Leave a Comment