O que são os protocolos de pesquisa médica?

O mundo como o conhecemos não existe mais”. Essa frase do biólogo e pesquisador Átila Iamarino (se você ainda é um dos raros terráqueos brasileiros que ainda não o conhece e nem acompanha o seu trabalho, faça um favor a si mesmo e clique aqui para ir até seu canal no YouTube ou ao Nerdologia) resume bem o momento histórico que vivemos.

As medidas de isolamento social e de quarentena, tão essenciais para garantir que a disseminação da covid-19 não superlote hospitais e aumente significativamente o número de mortes pela mais grave pandemia de nosso século, sofrem ataques daqueles que acreditam que o coronavírus é um mal menor diante do problemas que a paralisação das atividades em todo o mundo poderá causar a economia mundial; embora estes não levem em conta, por exemplo, que regiões que adoraram o regime de isolamento e de quarentena durante pandemias – especialmente a de gripe espanhola, no início do século XX – o quanto antes se sobressaíram sobre outras regiões em termos de recuperação de doentes e de recuperação econômica. Sim, a história nos mostra que salvar vidas sempre é um bom negócio, mesmo para aqueles que desejam priorizar a economia.

Então, num esforço de negação da realidade, apelam para resultados enviesados e deturpam conclusões de estudos que, embora alguns apontem caminhos interessantes para o tratamento da covid-19, ainda estão longe de trazer qualquer conclusão sobre o assunto. O maior objetivo mundial, neste momento, é diminuir os impactos que a doença trará ao mesmo tempo em que os esforços se concentram em desenvolver medicamentos e uma vacina que sejam eficazes e salvem o maior número possível de vidas.

O que ocorre é que este processo não é rápido, nem instantâneo como muitos tendem a crer. Pesquisas médicas seguem rígidos protocolos de pesquisa e de ética. Como veremos a seguir, esse processo é lento justamente para minimizar possíveis erros e danos aos participantes do estudo, ao mesmo tempo em que visa diminuir a interpretação errônea ou vieses que possam deturpar os resultados e as possíveis conclusões.

A primeira coisa que é importante saber é que a pesquisa científica, no geral, trabalha com o teste de hipóteses. Já discutimos sobre isso aqui. As hipóteses são importantes pois demarcam não só o que está se estudando, como também devem ser passíveis de verificação por parte de outros cientistas.

Identificando os problemas (e as soluções também)

O desenvolvimento de medicamentos e, especificamente, das vacinas, é resultado de um longo processo, cujo início ocorre com a identificação do agente causador de uma doença e da ação dentro de nosso organismo. Ao compreender a estrutura de disseminação, infecção e das consequências para o corpo humano, teremos condições de delimitar a atuação das substâncias químicas que já conhecemos ou, se for o caso, empenhar o desenvolvimento de novas substâncias para atacar o problema. No caso da covid-19, esse trabalho teve passos importantes, como a identificação do vírus causador da doença, o mapeamento de seus genes e a identificação das formas como ele poderia ser transmitido de uma pessoa para outra. Graças a isso, sabemos por exemplo, se o vírus sofreu alguma mutação, isto é, modificou a sua estrutura, tornando-se mais agressivo ao nosso organismo ou se consegue sobreviver o suficiente para se disseminar por outros meios – como pelo o ar, por exemplo.

O importante é reunir a maior quantidade de informações possível sobre a doença, pois serão com base nessas informações que a ciência lidará. Mas não é uma estrada pavimentada: muitos conhecimentos podem ser obtidos durante os tratamentos, consensos podem ser desfeitos, mudanças de rumo podem ocorrer e são perfeitamente naturais no ambiente científico.

Os protocolos de pesquisa

Com as informações em mãos, começa a pesquisa por substâncias que podem auxiliar no tratamento dos sintomas ou até mesmo evitando que eles apareçam, com a desativação do vírus ou morte das bactérias que infectam o organismo. Nesta fase, diversos candidatos aparecem: medicamentos que eram utilizados para tratar outras doenças, substâncias cujas aplicações ainda eram desconhecidas, mas que apresentavam bons resultados contra uma determinada característica de um organismo invasor, novas substâncias ou métodos de tratamentos desenvolvidos especificamente para este caso. Infelizmente, na maioria dos casos essa identificação leva dias, meses e até anos; afinal, todo esse processo de identificação e de testes não é rápido e nem sempre é único, como veremos adiante.

Os responsáveis por essa pesquisa estão em grupos de pesquisa que, geralmente, são interdisciplinares, isto é, são compostos por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, como médicos, biomédicos, farmacêuticos, biólogos, sociólogos, historiadores, entre outros, que trabalham em laboratórios de indústrias farmacêuticas ou em universidades que realizam pesquisas na área. Estes profissionais, ao proporem a sua pesquisa, devem encaminhá-la aos comitês de ética e pesquisa (na verdade, toda pesquisa científica que envolva qualquer risco de dano a seres vivos deve ser encaminhada e seguir as diretrizes do comitê de ética das universidades para poder ser realizada), que aprovando os métodos e objetivos de pesquisa, autoriza a etapa em que essas substâncias serão testadas.

Inicialmente, as substâncias são testadas para se verificar os possíveis níveis de dosagem seguros para as cobaias; depois, se verifica a presença de efeitos colaterais resultantes do uso da substância testada. Já nesta fase, é comum a adoção de um grupo de controle: por exemplo, dois grupos com o mesmo número de camundongos é infectado com o mesmo vírus, mas só um dos grupos recebe a substância pesquisada. A partir daí, por exemplo, é possível verificar quantos camundongos de cada grupo sobrevive, tem sequelas, morre ou é curado. Afinal, se um número de cobaias se recupera – em menor tempo – após consumir a substância testada em comparação com o grupo que não recebeu, então temos um indicativo de que ela pode ser útil no tratamento em humanos.

É aqui que os testes clínicos em seres humanos começam. Sempre com um grupo muito pequeno e de forma voluntária, os pesquisadores fazem os mesmos testes para ajuste de dosagem e de verificação da eficácia da substância. Da mesma forma que em camundongos, os voluntários humanos são divididos em grupos que recebem ou dosagens diferentes, ou nenhuma dosagem para que se compare os danos e benefícios no tratamento da doença em questão. O interessante aqui é que os voluntários não devem saber se estão consumindo o medicamento com o princípio ativo ou só um placebo – um composto geralmente feito de farinha e açúcar, participando do que chamamos de “teste cego”. O motivo? Pessoas que acreditam que estão recebendo um medicamento que pode lhes salvar a vida tendem a apresentar sinais de melhora pelo simples apelo psicológico que a situação traz. Isso é chamado de efeito placebo e é tão importante de se minimizar que protocolos de pesquisa médica defendem que nem mesmo os pesquisadores que aplicam as substâncias saibam quem está ou não recebendo o princípio ativo. É o chamado “teste duplo-cego”, que evita que resultados sejam erroneamente interpretados pelos pesquisadores ou deturpados para favorecer determinada substância. É essa a principal crítica aos testes com a cloroquina ou hidroxocloroquina: o primeiro estudo com alto impacto sobre o uso da substância, publicado pelo cientista francês Didier Raoult no International Journal of Antimicrobial Agents, indicando que a cloroquina tem ótimos efeitos sobre o Sars-Cov-2, tem fortes indícios de falsificação de dados, além de não ter sido revisado por pares, prática comum antes de se publicar um artigo (sobre isso, leia esse texto aqui). Muitos outros testes em muitas outras condições são necessários para que se determine que a cloroquina ou a hidroxocloroquina sejam realmente eficazes contra a covid-19 e quais são as doses seguras e em quais condições as suas aplicações seriam seguras para o paciente.

Desenvolver medicamentos e vacinas não é algo rápido e nem barato. Mas é fundamental que os protocolos de pesquisa sejam seguidos pela própria segurança de pacientes e da sociedade que utilizará os conhecimentos científicos, sobretudo no consumo dos medicamentos ou das vacinas que surgirem. Não é hora de achismos ou de soluções capengas, especialmente aquelas que vendem milagres e minimizam os riscos do uso de medicamentos sem os devidos testes clínicos. Uma guerra se vence, principalmente com inteligência.

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