O editorial da Nature sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2022

A Nature é um dos mais prestigiados — e mais conhecidos — periódicos científicos do mundo e declarou, em editorial publicado no último dia 25 de outubro, o seu apoio à candidatura de Lula para a presidência do Brasil. Este é um posicionamento importante de uma organização com mais de um século de existência e reconhecida por publicar ciência de ponta do mundo inteiro.

“Só há uma escolha na eleição do Brasil — para o país e para o mundo”

O periódico já havia marcado a sua posição em 2018, quando publicou que o “novo presidente do Brasil aumenta ameaça global à ciência” e que “a eleição de Jair Bolsonaro é ruim para a pesquisa e para o meio ambiente” [1]. Expor as posições políticas não são exatamente uma novidade para entidades científicas ou para entidades que divulgam ou discutem a ciência e os seus conhecimentos. Além das eleições brasileiras, a Nature já havia declarado apoio ao então candidato Joe Biden [2]. Outras entidades brasileiras, como a SBPC e a ANPG também se manifestaram favoravelmente à eleição de Lula [3], em especial, por conta da postura negacionista e dos constantes cortes ao investimento estatal em ciência e tecnologia e em educação promovidos pelo governo Bolsonaro.

Mesmo ocupando o top-20 no ranking de países que mais publicam artigos científicos no mundo [4], o Brasil perdeu enormes recursos públicos destinados ao financiamento de pesquisas (que inclui a pesquisa, desenvolvimento ou compra de equipamentos e o pagamento de salário aos pesquisadores), ao mesmo tempo em que viu o prestígio da ciência ser claramente diminuído pelo governo Bolsonaro. Desde 2016, não temos um ministério dedicado exclusivamente à ciência e os seus escassos recursos devem ser compartilhados com outras áreas; programas de financiamento foram sumariamente cortados e até cursos de pós-graduação de grande contribuição ao ensino e a pesquisa brasileira foram fechados por falta de recursos [5].

O panorama de investimentos em ciência nos últimos anos é este:

Reproduzido de: Jornal da USP

O menor patamar de investimentos em ciência nos últimos 12 anos não foi superado em 2022. Pelo contrário: no último 11 de outubro, o governo Bolsonaro anunciou um corte bilionário nas contas de instituições de ensino administradas pelo governo federal — o que, na prática, inviabilizaria o funcionamento das instituições. Mesmo após o recuo dois dias depois, fica nítido como questões que envolvam ciência e educação são tratadas como algo de menor importância para o governo e para o desenvolvimento do país.

Por tudo isso, não deveria parecer surpreendente o posicionamento da Nature e de outras entidades vinculadas à ciência e à educação. Tanto quanto uma questão política (e a neutralidade, dentro ou fora da ciência, se parece mais como uma utopia que favorece apenas a quem não deseja que privilégios sejam revogados), o posicionamento é uma questão de sobrevivência: não é possível que um país se desenvolva de forma sustentável e reduzindo as desigualdades se este apenas se preocupar em exportar commodities que são exploradas sem nenhum respeito às leis e ao meio-ambiente. Investir em ciência é investir na real possibilidade de desenvolvimento do Brasil.

O posicionamento da Nature a respeito das eleições brasileiras em 2022 pode ser lido, na íntegra, aqui ou aqui. A versão em língua portuguesa é transcrita a seguir:

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Só há uma escolha na eleição do Brasil — para o país e para o mundo

Um segundo mandato para Jair Bolsonaro representaria uma ameaça à ciência, à democracia e ao meio ambiente.

Os brasileiros decidirão no dia 30 de outubro se Jair Bolsonaro conseguirá um segundo mandato. Crédito: Adriano Machado/Reuters

Quando o Brasil elegeu Jair Bolsonaro como presidente há quatro anos, este diário estava entre os que temiam o pior. “A eleição de Jair Bolsonaro é ruim para a pesquisa e para o meio ambiente”, escrevemos [1].

Populista e ex-capitão do exército, Bolsonaro acusou o cargo de negar a ciência, ameaçar os direitos dos povos indígenas, promover armas como solução para as preocupações com a segurança e impulsionar uma abordagem de desenvolvimento a todo custo para a economia. Bolsonaro tem sido fiel à sua palavra. Seu mandato tem sido desastroso para a ciência, o meio ambiente, o povo do Brasil — e para o mundo.

Neste fim de semana, os brasileiros irão às urnas no segundo turno de uma das eleições mais importantes do país desde o fim da ditadura militar, em 1985. Bolsonaro está concorrendo à reeleição para o Partido Liberal. Seu adversário é Luiz Inácio Lula da Silva, líder do Partido dos Trabalhadores que foi presidente por dois mandatos entre 2003 e 2010. No primeiro turno da eleição, realizada em 2 de outubro, Lula bateu Bolsonaro para o segundo lugar, mas por uma margem inesperadamente estreita. Ele não conseguiu ganhar uma maioria geral, forçando os dois a uma eleição em segundo turno.

O recorde de Bolsonaro é de encher os olhos. Sob sua liderança, o meio ambiente foi devastado à medida que ele reverteu as proteções legais e depreciou os direitos dos povos indígenas. Só na Amazônia, o desmatamento quase dobrou desde 2018, com mais um aumento esperado quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil divulgar seus últimos dados de desmatamento nas próximas semanas.

Assim como seu ex-homólogo populista dos EUA Donald Trump, Bolsonaro ignorou os avisos dos cientistas sobre o COVID-19 e negou os perigos da doença. Bolsonaro também minou os programas de vacinação, questionando a segurança e a eficácia dos jabs. Mais de 685 mil pessoas morreram no Brasil por COVID-19. A crise econômica que se seguiu à pandemia atingiu duramente os brasileiros.

Outras semelhanças foram traçadas entre Trump e Bolsonaro — ambas têm procurado minar o Estado de Direito e cortar os poderes dos reguladores.

O financiamento para a ciência e a inovação estava diminuindo quando Bolsonaro assumiu o cargo, e continuou a cair sob sua liderança, a ponto de muitas universidades federais estarem lutando para manter as luzes acesas e prédios abertos. A ciência e a academia serviram como folhas fáceis em uma ofensiva anti-elite que espelhava as guerras culturais dos Estados Unidos.

Isso contrasta com a situação cerca de uma década antes de chegar ao poder, quando o Partido dos Trabalhadores fez grandes investimentos em ciência e inovação, fortes proteções ambientais estavam em vigor e oportunidades educacionais foram ampliadas. Além disso, graças, em parte, a um enorme sistema de transferência de dinheiro para os pobres, chamado Bolsa Família, as pessoas de baixa renda viram ganhos de riqueza e oportunidade.

O Brasil brandiu sua reputação de líder ambiental ao aumentar a aplicação da lei ambiental e reduzir o desmatamento na Amazônia em cerca de 80% entre 2004 e 2012. Por um tempo, o Brasil rompeu a ligação entre o desmatamento e a produção de commodities como carne bovina e soja, e parecia que o país poderia ser pioneiro em sua própria marca de desenvolvimento sustentável. Muito desse progresso foi desfeito desde então.

Ao contrário de Bolsonaro, Lula não tem procurado lutar contra pesquisadores. Ele prometeu alcançar o desmatamento “líquido zero” e proteger as terras indígenas se eleito. Mas Lula não é sem bagagem. Ele passou 19 meses na prisão como resultado de uma investigação de corrupção que implicou funcionários do governo, incluindo líderes do Partido dos Trabalhadores. Mas, em 2019, o Supremo Tribunal Federal determinou que Lula e outros haviam sido presos indevidamente antes de suas opções de recurso terem sido esgotadas. As condenações de Lula foram anuladas em 2021, abrindo caminho para que ele concorresse novamente à presidência.

Nenhum líder político chega perto de algo como perfeito. Mas os últimos quatro anos do Brasil são um lembrete do que acontece quando aqueles que elegemos desmantelam ativamente as instituições destinadas a reduzir a pobreza, proteger a saúde pública, impulsionar a ciência e o conhecimento, salvaguardar o meio ambiente e defender a justiça e a integridade das evidências. Os eleitores brasileiros têm uma oportunidade valiosa para começar a reconstruir o que Bolsonaro derrubou. Se Bolsonaro ficar mais quatro anos, o dano pode ser irreparável.

Nature 610, 606 (2022)

doi: https://doi.org/10.1038/d41586-022-03388-y

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Enquanto os nossos jornais ainda decidem sobre a dificuldade da escolha entre os candidatos, a Nature e outras publicações estrangeiras apontam o que a coisa realmente é: a civilização x barbárie. E essa nunca foi uma escolha muito difícil.

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[1] Nature 563, 5-6; 2018
[2] Nature 586, 335 (2020)
[3] O posicionamento pode ser lido na íntegra neste link: http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/mais-de-700-cientistas-ja-assinaram-manifesto-por-novo-governo/
[4] Dados até 2018 mostram que o Brasil ocupava a 11ª posição na publicação de artigos científicos no mundo: https://revistapesquisa.fapesp.br/publicacoes-cientificas-por-paises-contagem-por-autoria-e-por-artigo/
[5] O caso mais recente e famoso foi o da Unisinos, que encerrou boa parte de seus programas de pós-graduação: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/07/unisinos-encerra-quase-metade-dos-programas-de-pos-graduacao.shtml

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