Como um texto de 1952 sobre o ensino de Física no Brasil dá os contornos do ensino de ciências atualmente praticado no país.
Richard Philips Feynman (1918 – 1988) foi um dos maiores físicos americanos da história. Participou ativamente do Projeto Manhattan (que culminou na elaboração das bombas que dizimaram Hiroshima e Nagasaki) e elaborou a QED – Quantum Eletrodynamics ou Eletrodinâmica Quântica, teoria que rendeu a ele o Prêmio Nobel de 1965. Não o bastante, Feynman é tido como o precursor da nanotecnologia.
Feynman também se notabilizou por sua personalidade carismática, pelo senso de humor e pela facilidade com que ensinava em suas palestras no Caltech – ou em outros recintos menos acadêmicos. Reconhecidamente possuidor de um didatismo além do normal, Feynman foi convidado a lecionar no Brasil entre 1951 e 1952 (os detalhes e as razões da vinda dele ao Brasil podem ser lidos aqui). E Feynman narra sua experiência de ensino de Física em nosso país em um capítulo de seu livro: “O sr. está brincando, Sr. Feynman — As estranhas aventuras de um físico excêntrico” (Editora UnB, 2006, esgotado). E tudo o que o cientista descreve em sua experiência acadêmica na década de 1950 (infelizmente) continua contemporâneo. E isso é um sério risco para o nosso futuro.
Em seu texto (que pode ser conferido na íntegra neste endereço, em inglês), Feynman cita seu inconformismo diante do ensino puramente mecânico, onde professores ditavam leis e regras e alunos simplesmente repetiam tudo aquilo, sem serem capazes de citar exemplos ou aplicações cotidianas daquilo que estudavam:
“(…) Mais tarde, eu assisti a uma aula de engenharia. A aula, traduzida para o inglês, soava algo como “Dois corpos… são considerados equivalentes… se torques iguais… produzirem… aceleração igual. Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem aceleração igual.” Todos os estudantes estavam lá ouvindo o professor ditar, e quando o professor repetia, eles checavam pra ter certeza que escreveram tudo certo. Então eles escreveriam a próxima frase, e assim por diante. Eu era o único que sabia que o professor estava falando sobre objetos com o mesmo momento de inércia, e mesmo pra mim era difícil perceber isso.
Eu não consigo ver como eles vão aprender alguma coisa a partir disso. Aqui estava ele falando sobre momento de inércia, mas não houve nenhuma discussão sobre quão difícil é empurrar uma porta quando você põe pesos próximos ao trinco, comparado com a dificuldade quando eles são postos próximos à dobradiça – nada!
Depois da leitura, eu conversei com um estudante: “Você anota tudo – o que você faz com isso?”
“Oh, eu estudo elas”, ele disse. “Nós teremos um exame.”
“E como será esse exame?”
“Muito fácil. Eu posso lhe dizer agora uma das questões”. Ele olhou no caderno e disse: “ ‘Quando dois corpos são equivalentes?’, e a resposta é, ‘Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais produzirem aceleração igual.’”. Então, você vê, eles conseguiam passar nos testes e “aprender” todas essas coisas, e mesmo assim não saber nada, exceto o que eles tinham memorizado.”
Ao final de sua estadia no Brasil, Feynman fez um seminário a respeito do ensino de ciências em nosso país. A descrição dos métodos de ensino e de aprendizagem parecem sido elaboradas em algum momento de nossa década contemporânea, mas é de 1952!
Chega a ser um tanto sufocante lembrar que esta descrição feita por Feynman foi dada há mais de sessenta anos!
Certa vez, pedi que meus alunos do Ensino Médio de uma escola onde lecionava Física — disciplina da qual sou licenciado desde 2009 — escrevessem tudo aquilo que lembrassem a respeito de suas aulas de Ciências Naturais. Meu objetivo era saber quais conceitos, leis, princípios eles haviam conhecido e de que forma eles associavam aquilo ao seu cotidiano. A maioria das respostas citava (com alguns erros conceituais) os princípios da cinemática e do movimento uniforme — que quase todos reduziram a tal “equação do sorvete” (oi?), passando pela dinâmica newtoniana e algumas considerações sobre termodinâmica; outros poucos alunos citaram grandezas do eletromagnetismo, tais como a corrente elétrica e sua relação matemática (i=Q/t) e o próprio conceito de magnetismo. Nenhum aluno foi capaz de relacionar corretamente o princípio da inércia com a frenagem ou aceleração dos automóveis (sabe quando você está em um ônibus trafegando por alguma avenida de sua cidade e o motorista de repente freia o veículo e aí você se desloca para frente?) ou razão pelas quais é impossível um motor funcionar com eficiência de cem por cento; todos os alunos possuíam telefones celulares com touchscreen, mas nenhum foi capaz de relacionar o funcionamento de sua tecnologia com o conceito de pressão; nenhum citou o papel dos eletroímãs nas portas giratórias dos bancos, ou do campo elétrico nas fotocopiadoras; todos se beneficiavam da energia elétrica, mas ninguém a associava com o efeito joule e o funcionamento dos aquecedores e das torneiras elétricas — que eram absolutamente comuns em uma cidade com temperatura anual em torno dos 15°C.
Isso me remontou ao texto de Feynman. Como, mesmo após sessenta anos, nós ainda encontramos um ensino de ciências baseado no conteudismo e no “aprimoramento” da capacidade de memorização, onde citamos, criamos musicas e simbologia dita ‘fofa’ (tal qual a equação do sorvete, que nada mais relaciona a posição em relação ao tempo de um ponto material que se desloca com velocidade constante) ou pornográfica para as tais “fórmulas”, com o objetivo único de fazer alguém a chegar a uma — discutível — resposta correta? As variadas hipóteses passam pelas políticas públicas para a educação, falhas na formação do professor, falta de recursos para aulas expositivas, desinteresse que a sociedade tem pela ciência, etc. Qualquer que seja o motivo, torna-se perigoso para um país que deseja ter um futuro sólido e que deseja produzir tecnologias e conhecimento por conta própria, não ter gente interessada em propagar, estudar e produzir conhecimento científico. Dificilmente um adulto transformaria seus traumas no aprendizado científico em vontade de estudar alguma ciência. Mais: torna-se potencialmente desastroso que alguém saia do ensino básico sem compreender a diferença entre potência e diferença de potencial e saia por aí pensando que um eletrodoméstico tenha mais potência “apenas” por ele funcionar ligado à uma rede cuja diferença de potencial seja de 220 V — na verdade, é a potência elétrica, medida em watt, que é responsável por um eletrodoméstico, uma furadeira por exemplo, ter um rendimento melhor do que outra furadeira — ou saia por aí sem entender por que que é que existe o limite de velocidade nas estradas — e principalmente, por qual razão o limite de velocidade deve ser respeitado — ou o que significam a quantidade de calorias descritas nas embalagens dos produtos ou o quão perigoso pode ser misturar aleatoriamente produtos de limpeza (ainda mais acrescentando água quente a essa mistura toda).
Pessoas que não conseguem associar o conhecimento científico com as suas aplicações no cotidiano podem tornar-se meras reprodutoras de informações. Pessoas que não pensam, não questionam e sequer buscam informações em fontes confiáveis. Não deve ser à toa que e cada vez mais crescente a disseminação de boatos e de informações falsas por aí (vide o famoso hoax do “bolsa bandido”). Nosso ensino de ciências, há tempos, é apenas baseado em simples reprodução de conceitos e resolução de problemas. São raras as aulas que abordam os conceitos científicos como base de nossas tecnologias em nosso cotidiano.Os ditos “melhores sistemas de educação” são aqueles em que o ensino de ciências é feito à base de resolução de problemas, exercícios, pressões psicológicas e de resultados frios propagados como “o sistema X é o que aprova mais alunos no vestibular Y”. Portanto, a qualidade no ensino, e por consequência, a qualidade do ensino de ciências passa pela formação de pessoas capazes de memorizar informações e de conceitos, mas que pouco conseguem aplicar ou associar em seu cotidiano o que foi memorizado nos exercícios e problemas que primam pela manipulação algébrica.
Se precisamos desenvolver o país de forma sustentável e duradora, esse desenvolvimento passa pela ciência, pela descoberta de novos conhecimentos, pelo aprimoramento de tecnologias. Essa mudança passa, necessariamente, pela forma como ensinamos a ciência aos nossos alunos e como divulgamos a ciência para a sociedade. Uma mudança verdadeira, que faria com o que o ensino de ciências deixasse de ter apenas o (indesejável) papel de treinador de memorização dos estudantes e passasse a ser algo prático, que fizesse os alunos questionadores, com plena capacidade de formular hipóteses e especialmente, de entender que praticar ciência é algo tão humano quanto escrever uma poesia. Não é, Feynman?
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