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E se buscássemos as perguntas?

Faz algum tempo que Randall Munroe anunciou um novo volume do fabuloso “E se? Respostas científicas para perguntas absurdas” (Companhia das Letras, 2014, 323 p.). O autor, criador do XKCD (se você não conhece o XKCD, está usando a internet de modo errado) é formado em física e ex-projetista da NASA e criou uma série de tirinhas que apresenta a ciência, o mundo acadêmico e outras coisas sobre o mundo de forma muito, muito irreverente.

A imagem a seguir, que usei como um mantra quando fui defender a minha dissertação, é uma amostra do conteúdo do site de Munroe.

“A melhor defesa de tese é uma boa defesa de tese” | Reprodução XKCD.

Mais do que apresentar o mundo científico, Randall responde a perguntas sobre temas científicos enviadas pelos leitores do site. Dessas perguntas surgiram o livro que, em setembro de 2020, terá o seu segundo volume lançado.

Uma das coisas que considero mais interessantes no trabalho de Munroe é que as perguntas não parecer ter uma marcação etária: uma criança de sete anos ou um idoso de setenta podem igualmente ter a mesma curiosidade — ainda que perguntas relativamente absurdas possam ser feitas em nome da vontade de saber. Mas ter as perguntas como ponto de partida não serve apenas para escrever livros sobre ciência: a evolução do conhecimento científico tem origem no questionamento, como bem defendeu Gaston Bachelard [1]. Nada é mais científico do que desejar responder a perguntas, a buscar respostas e admitir que, em muitos casos, a resposta será provisória até que se encontre um novo caminho, uma nova pergunta cuja resposta anterior seja insuficiente. Aliás, essa é uma discussão muito pertinente ao ambiente de sala de aula: apresentar como os conhecimentos científicos avançam, se modificam ou são descartados pelos cientistas é, em muitos casos, mais importante do que gastar vários minutos em deduções matemáticas que pouco contribuem para a compreensão física de que se é estudado. É discutindo pontos como a compreensão histórica da natureza da luz — Newton defendia a teoria corpuscular, em que a luz era formada por partículas, enquanto Huygens defendia a natureza ondulatória da luz — que temos espaço para falar, por exemplo, da autoridade do argumento, dos contextos históricos, da atual compreensão do fenômeno (oi, dualidade onda-partícula!), de suas aplicações… Situações que são, sem dúvida, mais representativas sob o ponto de vista do conhecimento humano sobre o tema.

Por isso, discutir ciências em sala de aula passa longe de oferecer respostas prontas e mais distante ainda de ser uma função de busca por respostas puramente corretas, como comumente encontramos nos materiais didáticos.

Não é preciso recorrer a perguntas cujas respostas possam depender de reflexões profundas e inquietantes, como aquela apresentada por Thomas Nagel em um dos artigos mais conhecidos da história da filosofia [2], cujo título apresenta o seu objeto de investigação: “como é ser um morcego?”. Temas dentro de cada área do conhecimento podem ser bons o bastante para que tenham perguntas que (a) não tenham sido completamente respondidas ou (b) tenham respostas incompletas ou ainda (c) tenham situações que sejam contraintuitivas, isto é, contrariam aquilo que os alunos têm como concepção inicial de algum fenômeno natural.

Nem sempre soubemos da existência da gravidade ou de seus efeitos. A física aristotélica — que também é conhecida como a “física do senso comum” — defendia que os objetos caiam com velocidade proporcional a sua massa. Isso explica, à primeira vista, porque uma bolinha de metal chegaria ao solo primeiro do que uma folha de papel. Mas, como sabemos, isso acontece por conta da resistência do ar sobre os dois objetos. Retire o atrito e você veria os dois objetos chegarem ao mesmo tempo no chão. Então, pergunte aos alunos sobre “o que aconteceria se dois objetos de massa diferente (e aqui você inclui exemplos do cotidiano) fossem soltos da mesma altura?”, para depois, acrescentar a mesma pergunta, o que aconteceria se esses dois objetos fossem soltos em outro corpo celeste, como a Lua ou um planeta, como Júpiter ou Saturno.

Perguntas tem o poder de gerar inquietação, o incômodo pela busca pela resposta. Se Randall Munroe e o seu “E se?” tem a premissa de responder a perguntas absurdas — embora não seja nenhum absurdo buscar a resposta, por exemplo, da pergunta “o que seria observado por um astrônomo alienígena que observasse a Terra a partir de seu planeta?”, em sala de aula, perguntas bem menos complexas podem gerar respostas que são abrangentes em termos conceituais e contextuais.

Um bom lugar para encontrar materiais do tipo é no site do Centro de Referência para o Ensino de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul — CREF UFRGS. A seção “pergunte ao CREF” é recheada de questões feitas por internautas e respondidas em linguagem simples e acessível pelo professor Fernando Lang. É certamente um dos espaços mais interessantes da internet brasileira.

Mas e se não quisermos levantar perguntas curiosas? Isto é, e se não quisermos ter perguntas cujas respostas existam, mesmo que sejam obtidas a partir do cruzamento de diversas respostas? E por que você faria isso? Bem, é sempre importante lembrar que a ciência não tem resposta para todas as perguntas [4]. E as respostas que possuímos, em muitos casos, não são as últimas. Uma das obras que tratam disso é o livro “Não tenho a menor ideia: um guia para o universo desconhecido”, escrito por Jorge Cham e Daniel Whiteson (BestSeller, 2019, 374 p.). No livro, os autores apresentam perguntas cujas respostas são incompletas ou desconhecidas pela ciência em termos de cosmologia, astronomia e astrofísica. Embora longo, o livro apresenta diversos quadrinhos e infográficos, além das perguntas que podem ser adaptadas e utilizadas em sala de aula como ponto de partida para a discussão de diversos tópicos, desde a origem do universo até o desenvolvimento tecnológico nos séculos XX e XXI.

Até aqui, propusemos que você faça as perguntas aos seus alunos para que eles pensem, pesquisem e discutam as respostas. Mas esse papel também pode ser invertido: alunos podem propor perguntas, especialmente aquelas que, como no livro de Cham e Whiteson, não possuem respostas completas ou totalmente conhecidas. Esse exercício é particularmente útil quando desejamos instigar a curiosidade dos alunos sobre algum tema ou quando desejamos demonstrar o quanto ainda podemos descobrir sobre o universo, a vida, o mundo que nos cerca. Se as perguntas e as respostas obtidas puderem ser socializadas pelos alunos, ainda melhor: a discussão poderá ou não chegar a um consenso, o que é muito parecido com o que acontece dentro dos mecanismos de validação do trabalho dos cientistas dentro da ciência [5].

Ah, e uma premissa importante: não existem perguntas estúpidas. O que não significa, claro, que certas estupidezes (que plural estranho!) devam ser evitadas [6].

Mais do que não ofender, perguntar nos permite construir novas janelas para o mundo. Quando essas janelas estão bem construídas, outras surgem em sua vizinhança. Oferecer janelas já prontas, cuja única luz visível seja aquela emitida por coisas prontas é oferecer uma janela cheia de cortinas que dificilmente poderão ser removidas sem esforço. Gosto de pensar que, fazendo as perguntas certas, formaremos os arquitetos do mundo.

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[1] Sobre a filosofia de Gaston Bachelard e a sua contribuição para o ensino de ciências, este interessante artigo de Lopes (1993), disponível em: https://www.raco.cat/index.php/Ensenanza/article/download/21303/93272
[2] A versão em língua portuguesa do artigo de Nagel pode ser acessada neste link: https://www.cle.unicamp.br/eprints/index.php/cadernos/article/view/617/495
[4] Neste ponto, alguém poderia se perguntar: e por que devo confiar na ciência se ela não possui todas as respostas? Bem, discutimos isso aqui: https://ccult.org/por-que-confiar-na-ciencia.
[5] Sobre consensos científicos, leia: https://ccult.org/sobre-o-consenso-cientifico-das-mudancas-climaticas
[6] E isso é tão recorrente no meio acadêmico que já foi tem até da Science (!): https://www.science.org/content/article/don-t-be-guy-guide-asking-nonstupid-questions-during-scientific-talks

*Imagem do cabeçalho: Adam Rubens/Experimental Error

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F. C. Gonçalves

Flávio “F. C.” Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.

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