Discutindo o conceito de tempo utilizando ficção científica

O tempo talvez seja uma das maiores inquietações da humanidade. Agostinho de Hipona, também conhecido como Santo Agostinho, um dos principais pensadores dos primeiros séculos do cristianismo, é o autor de um dos melhores resumos sobre como o tempo nos inquieta:

“O que é o tempo? Quando quero explicá-lo não acho explicação. Se o passado é o que eu, do presente, lembro, e o futuro é o que eu, do presente, antecipo, não seria mais certo dizer que o tempo é só o presente? Mas quanto dura o presente?” – Santo Agostinho

De fato, o tempo é algo fundamental na ciência — e não falo dos prazos para envio de artigos científicos ou para a participação em projetos de pesquisa. Em física, o tempo, ao lado do comprimento e da massa, ocupa o posto de “grandeza fundamental”. De alguma forma, toda medida física passa pela medida de tempo. Então, defini-lo e medi-lo é importantíssimo para a formulação do conhecimento físico e humano do mundo. Afinal, a noção de passagem de tempo e a associação dessa passagem com fenômenos naturais começou muito antes de sermos capazes de desenvolver os primeiros relógios. Os primeiros calendários, especialmente aqueles desenvolvidos pelos babilônicos, levavam em conta o ciclo lunar para estimar a passagem de tempo. Mais tarde, criamos relógios a base de areia ou de água e aqueles que mediam o tempo a partir da luz solar — os tão conhecidos relógios de sol.

Mas foi só a partir do século XVII que os primeiros relógios mecânicos foram desenvolvidos [1]. Medir o tempo com precisão só se tornou uma necessidade a partir do século XIX — muito por conta da expansão do transporte ferroviário e a necessária sincronização dos relógios entre as estações [2]. A partir de então, começamos a desenvolver relógios cada vez mais precisos. Atualmente, os relógios atômicos são o instrumento de medida de tempo mais preciso que a humanidade conhece: relógios que medem a oscilação do átomo de césio-133 atrasam um segundo a cada 300 mil anos [3]. Aliás, em nome dessa precisão, em 2016, o último minuto do dia 31 de dezembro teve um segundo a mais [4]. Tudo para manter o tempo preciso.

O tempo não é apenas uma questão de medida. Ele também é uma questão de espaço. Essa compreensão pode nos ser estranha, mas pode fazer todo sentido quando pensamos nos furos de roteiros de filmes, em que os personagens combinam um horário de encontro, mas não comentam nada do lugar onde o encontro acontecerá. Todo evento acontece com coordenadas de tempo e de espaço. Essa ideia, fundamental para a teoria da relatividade de Einstein, abre caminhos para discussões em física que, evidentemente, abrangem outras disciplinas e áreas do conhecimento. Por isso, essa é uma oportunidade valiosa para inserir textos literários como base para as discussões conceituais sobre o tempo, relatividade, cosmologia, entre outros.

A viagem no tempo em uma tragédia futebolística

Discutir a natureza do tempo é discutir um aspecto importante sobre ele: ele é mesmo contínuo, como um rio que corre em direção ao mar? Temos a noção de que ele é contínuo e sempre se move em direção ao futuro. Muito dessa percepção se deve ao conceito de entropia, que o filme Tenet (Warner Bros, 2020) tem como parte fundamental de seu roteiro [5]. A descrição física do tempo para a física moderna pode ser fantástica, ao mesmo tempo em que pode parecer confusa (a ideia de que o tempo não é absoluto é uma das coisas mais chocantes, acredite). Assim, discutir a viagem no tempo pode ser uma grande introdução a discussão do tempo em sala de aula.

O curta-metragem “Barbosa” (1988), baseado no livro “Anatomia de uma derrota” (L&PM Editores, 2014, 288 páginas) é curto e profundo ao mesmo tempo. O filme mostra um homem atormentado pela lembrança da derrota da seleção brasileira na copa de 1950 que consegue voltar no tempo e tenta evitar o segundo gol uruguaio. O filme, na íntegra, está disponível no YouTube.

Além da discussão sobre o tempo e a viagem no tempo (é interessante perguntar aos alunos sobre suas impressões e opiniões sobre as consequências da viagem no tempo), o curta-metragem abre um espaço muito apropriado para discutir questões como: o futebol como cultura no Brasil e, especialmente, o racismo e a intolerância: a introdução do curta, com o depoimento do goleiro brasileiro que tomou os dois gols uruguaios é arrepiante.

O suporte de textos de ficção científica

A ficção científica é um dos gêneros literários mais conhecidos da cultura pop. Presente em filmes, séries e livros, a ficção científica que permite uma série de adaptações para a sala de aula. Autores como H.G. Wells, Isaac Asimov, Júlio Verne e Philip K. Dick produziram clássicos que discutiram desde a viagem espacial até o desenvolvimento da robótica e da inteligência artificial. Livros como “Eu, Robô” e “O Homem Bicentenário”, de Asimov, além de adaptados para o cinema, permitem discutir uma série de temas sobre a vida humana, inteligência, moralidade e o desenvolvimento tecnológico.

Contudo, contos de ficção científica podem ter um apelo e um papel tão profundo quanto livros de ficção científica. Ted Chiang, autor do conto “História de sua vida” (baseou o filme “A Chegada”), é um dos mais conhecidos. Mas outro conto de Chiang se encaixa perfeitamente para a discussão do tempo, de sua natureza e os aspectos culturais relacionados com ele.

Uma sugestão para a discussão do conto em sala de aula é a proposição de um seminário temático sobre a viagem no tempo a partir das concepções apresentadas no texto. A ideia é que os alunos apresentem os resultados de suas pesquisas e suas conclusões sobre a viagem no tempo para o passado, para o futuro e como o conhecimento científico lida com cada uma das possibilidades. Para isso, pode ser utilizada como base uma fala de Bashaarat, o comerciante dono de um portal (o “Portal dos Segundos”) que permite ao viajante viajar entre o passado e o futuro num intervalo de vinte anos, presente no conto “O Mercador e o Portal do Alquimista”:

“(…) entende agora quando digo que o futuro e o passado são iguais? Não podemos modificar nenhum deles, mas podemos conhecê-los de maneira mais completa”.

Uma sugestão de sequência didática:

  • Peça aos alunos que leiam previamente o conto “O Mercador e o Portal do Alquimista”
  • Apresente uma breve biografia do autor e o resumo da história para recordar o enredo e fatos importantes.
  • Estabeleça grupos temáticos que discutirão as possibilidades relacionadas com a viagem no tempo. Esses grupos deverão responder a perguntas como: “é possível viajar para o passado?”, “o que fazer para viajar para o futuro?”, “como a física explica a viagem no tempo?” ou “qual a visão científica do tempo?”.
  •  Lembre-se: esse tipo de estratégia de apresentação de conteúdos por parte dos alunos tem maior chance de contribuir para a aprendizagem efetiva dos alunos quando estes procuram responder a uma pergunta e discutir suas respostas com os pares.
  • Por fim, apresente os seus apontamentos sobre o que foi apresentado pelos alunos, complementando e corrigindo o que for necessário.

[1] FERREIRA, E. S. O relógio cicloidal de Huygens. Disponível em: https://www.ime.unicamp.br/sites/default/files/lem/material/pendulo_de_huygens.pdf
[2] Do livro “A informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada”, de James Gleick (Companhia das Letras, 2013).
[3] Como visto em: https://www2.ifsc.usp.br/portal-ifsc/o-relogio-mais-pontual-do-mundo.
[4] Leia mais em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/nao-acaba-nunca-dia-31-de-dezembro-tera-um-segundo-a-mais.ghtml.
[5] Uma descrição detalhada pode ser vista no vídeo: “A entropia em Tenet | Nerdologia” (https://www.youtube.com/watch?v=ac3gLrY_r7Y)

Cabeçalho: imagem de Garik Barseghyan por Pixabay

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