Artigos científicos não são o único parâmetro para verificar a qualidade da produção acadêmica

As verbas de financiamento da pesquisa científica não são infinitas (ao contrário do que muitas notícias falsas tentam desinformar por aí). Na realidade, o financiamento público da ciência tem sofrido cortes sucessivos tão significativos que retornamos ao patamar de investimento de 2012. Com isso, cada vez menos pesquisas – e cientistas e pesquisadores – tem acesso a recursos para financiar a sua busca pelo conhecimento, já que os recursos ficam cada vez restritos.

O conhecimento científico gera divisas para o país como um todo. Uma das formas de se desenvolver tecnologicamente é por meio do conhecimento científico: é com a pesquisa científica que podemos desenvolver materiais ou produtos mais avançados que serão posteriormente aplicados em outras tecnologias e que poderão ser vendidos ou dar origem a outras tecnologias que serão melhoradas e assim, sucessivamente. Por isso, o conhecimento científico é tão precioso em tempos de crise financeira. Afinal, se você precisa sair do atoleiro econômico, nada melhor do que possuir conhecimentos e tecnologias, bens e serviços que os outros não possuem ou não podem oferecer de forma mais agressiva, mas barata ou mais eficiente do que você.

Essa é uma das razões pelas quais o financiamento da ciência também oferecido pelos governos: todo o conhecimento obtido, a priori, pode beneficiar a sociedade como um todo, seja com os novos recursos que determinada descoberta científica pode trazer ou com as aplicações desse conhecimento que podem melhorar certos aspectos da vida dos cidadãos. A iniciativa privada também financia pesquisas científicas, contudo, o objetivo aqui é ter alguma forma de lucro com o desenvolvimento de novos métodos ou de novos materiais ou substâncias que poderão ser vendidos ou cedidos para serem produzidos por outros e renderem uma porcentagem com os royalties.

Então, como distribuir (os poucos) recursos que o financiamento público – e até o financiamento privado – possuem? Uma forma é avaliando a produção científica dos responsáveis pela pesquisa científica que deseja ser financiada. E é aqui que entram os artigos científicos e o fator de impacto.

Quando um cientista deseja comunicar uma nova descoberta ou os resultados de sua pesquisa, ele o faz em um artigo científico. Funciona assim: o cientista realiza a sua pesquisa científica, coleta os resultados, interpreta-os e envia para um periódico científico. o periódico revista esse estudo e se for condizente com o conhecimento científico relacionado ao estudo (ou aos objetivos da publicação), é publicado em uma edição e estará aberta ao público em geral – embora cientistas e pesquisadores sejam os destinatários finais deste tipo de publicação. Leia aqui uma síntese da complexidade de todo o processo.

Alguns periódicos (ou revistas científicas) são mais prestigiados do que outros e isso é consequência de diversos fatores, entre os quais a qualidade e o ineditismo das pesquisas publicadas nele. Quanto mais prestigiado um periódico científico, mais difícil é ter o seu artigo científico publicado nela. É por isso que os jornais e portais de notícia anunciam quando um ou mais cientistas brasileiros publicam seus artigos em revistas como a Science ou a Nature, que são revistas de grande prestígio no mundo todo e por isso, são tem um severo processo de seleção para a publicação dos artigos em suas edições.

O vídeo a seguir, apresentado pelo neurocientista Miguel Nicolelis, resume bem a questão da submissão dos artigos, a revisão por pares e o tempo para a sua publicação:

Professores universitários de instituições públicas devem publicar uma quantidade de artigos científicos inéditos se quiserem evoluir funcionalmente, isto é, ter aumento de salário. Isso garante que seus conhecimentos serão sempre atualizados e ainda aumenta a produção científica relacionada com o ciclo de desenvolvimento citado anteriormente.

Adotar esse critério não garantia de justiça no financiamento. Afinal, a tendência de quem já possui esse tipo de verba é mantê-la, uma vez que a sua pesquisa já tende a ser de alto impacto no meio acadêmico, enquanto aqueles que desejam aprofundar suas pesquisas, mas que não tem recursos para tal, ficam de fora, criando uma espécie de sistema de “castas científicas”.

E cientistas são seres humanos e por isso mesmo caem – intencionalmente ou não – em tentações acadêmicas. Uma delas é publicar seus artigos em uma revista qualquer, que em muitos casos sequer revisa o conteúdo dos artigos antes de publicar. Em outras vezes, publica os artigos científicos de seus próprios editores. Isso é uma trapaça grave para o meio científico. O risco de alguém sem conhecimento necessário para entender os erros contidos no artigo publicado e depois transformar isso em informação cientificamente embasada é inaceitável. A falsa correlação entre o desenvolvimento do autismo e a quantidade de crianças vacinadas com a vacina tríplice viral é um exemplo clássico desse tipo de conduta. Lembre-se de que informações de senso comum são resistentes mesmo após a instrução formal e por isso fica muito difícil refutar uma ideia quando o grupo social o qual você pertence continua acreditando na informação falsa ou incorreta.

Por isso a produção científica do ministro da educação chamou a atenção de muitas pessoas nos últimos tempos. Nos quatro anos como professor universitário, Abraham Weintraub registra quatro artigos científicos publicados até a data de publicação deste texto:http://lattes.cnpq.br/5940134985399027

Currículo Lattes de Weintraub | Reprodução.

Observe que os dois primeiros artigos são muito semelhantes, com uma pequena alteração no título – considerando, é claro, o título original e a sua tradução para o inglês – e foram publicados em duas revistas cujos princípios editoriais são claros: os artigos devem ser inéditos. Essa é uma falha grave no meio acadêmico, já que é o pesquisador o responsável por plagiar nenhuma obra, mesmo que ela seja de sua própria autoria.

Mas o caso mais curioso talvez seja o tempo entre a submissão e a aprovação do artigo “Poupança Individual de Aposentadoria – PIÁ”: o texto foi enviado em 09/06/2017 e foi aceito para a publicação em 12/06/2017. Um recorde quase imbatível, levando em conta que artigos podem demorar alguns meses entre o aceite da revista e a sua efetiva publicação.

Para piorar, Weintraub é membro do conselho editorial de uma das revistas em que seus artigos foram publicados. É como se você fosse o dono da bola e do campo onde será realizada a partida de futebol. Não há como garantir a isonomia do processo científico com essas condições.

Por isso, a produção acadêmica não leva em conta apenas a produção e a publicação de artigos científicos. Também é levada em conta onde esses artigos são publicados e como eles foram aceitos pela comunidade científica, isto é, o quanto o artigo foi citado por outros cientistas em seus artigos. Ainda assim, é importante ficar atento com esse tipo de artimanha acadêmica, principalmente de quem exige produção de alto impacto para continuar o financiamento de pesquisas científicas.

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