A “cura” da diabetes e algumas notas de cultura da ciência

A diabetes é uma doença crônica provocada pela produção insuficiente (ou inexistente) de insulina, um hormônio que regula a quantidade de glicose no sangue, permitindo que as células de nosso corpo tenham energia para executar as suas funções — e lembre-se de que as células estão para o organismo como os átomos estão para a matéria: elas constituem a estrutura fundamental de qualquer organismo vivo.

No caso específico da diabetes, quando o corpo humano (sim, estou falando de você, pâncreas) não é capaz de excretar corretamente a insulina no organismo ou aproveitá-la da melhor forma possível, os níveis glicêmicos sobem e as complicações disso podem resultar em neuropatias (isto é, danos nos nervos) que estão associadas desde a sérios problemas nos olhos — podendo resultar em cegueira permanente — até a amputações e danos graves nos rins. A dificuldade em excretar (em geral, pela incapacidade de produzir insulina) ou de absorvê-la corretamente (incluindo os casos de LADA) é um dos principais componentes para a classificação da diabetes em tipo 1 ou em tipo 2. No Brasil, a diabetes atinge quase dezesseis milhões de pessoas [1] e a imensa maioria da população com diabetes é portadora do tipo 2 da doença.

Tratar a diabetes não é a coisa mais confortável do mundo. Além das necessárias mudanças de hábito de vida relacionadas com o cuidado com a alimentação e a realização regular de atividades físicas — convenhamos, coisas que todo mundo deveria fazer —, é necessário fazer medidas constantes da glicemia (o que envolve retirar algumas gotas de sangue todos os dias para fazer o teste) e, em muitos casos, aplicar a insulina em alguns momentos do dia para regular a quantidade do hormônio no organismo. E se hoje avançamos o suficiente para termos tratamentos menos invasivos e com diferentes estratégias que podem ser adotadas para cada paciente, devemos, claro, ao esforço científico sobre o tema. E este esforço continua, afinal, ainda não temos a cura para a doença. E é sobre este ponto que precisamos parar, respirar e olhar tudo com um pouco mais de calma.

Nas últimas semanas, postagens afirmando que a cura da diabetes havia sido encontrada viralizaram aos montes no X/Twitter e no TikTok (argh!). Tirando as afirmações infundadas e sem apontamento de fontes que invariavelmente aparecem, uma delas chamou a atenção: ela se baseava em um artigo supostamente publicado na Nature em que cientistas chineses anunciavam a cura da diabetes tipo 2 com um tratamento de três meses duração. Como é que dizia Carl Sagan mesmo? Ah, é: alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias [2].

A publicação em questão está disponível aqui. Publicada em 30 de abril de 2024, o texto está longe de ser um artigo científico: na verdade, trata-se de uma correspondência, isto é, uma espécie de comunicação que um ou mais cientistas fazem para um periódico científico com o intuito de comunicar determinados resultados que consideram relevantes. Isso é comum dentro do contexto da ciência. Só que publicar esta correspondência, ainda que sob o “guarda-chuva” da Nature, não torna o conteúdo do texto automaticamente uma espécie de “norte conceitual”, uma verdade científica com a qual todos os cientistas terão de lidar a partir de agora. Uma correspondência deste tipo serve muito mais como um ponto de partida, uma descrição inicial de uma pesquisa para que os resultados sejam discutidos por mais cientistas e erros ou incompletudes sejam apontadas a medida em que um estudo avança. Portanto, não tem como objetivo apontar necessariamente uma descoberta (ainda mais em algo tão impactante como a cura de uma doença como a diabetes).

Uma pesquisa científica que resultasse em um resultado tão importante seria publicada como um artigo científico e não como uma correspondência e nem como um pré-print (preprint) [3]. Não é que a correspondência em si não tenha valor científico: é que uma alegação extraordinária, quando publicada em um artigo científico, detalha profundamente os conceitos e procedimentos que permitiram chegar as conclusões alegadas e passam pela revisão de outros cientistas antes de serem publicadas pelos periódicos. Em linhas gerais, quanto mais rigorosa a seleção e a revisão pelas quais um artigo está sujeito antes de ser publicado, menor será a chance de se publicar resultados que contém erros de procedimento ou de análise que, no fim das contas, podem prejudicar toda a cadeia de produção de conhecimento científico. Assim, com esse maior nível de precisão e de correção teórica e metodológica, maior será as chances de um artigo ser lido e seus resultados compartilhados e discutidos pela comunidade acadêmica. Por sua vez, para que estes resultados sejam acessados, eles devem ser publicados em algum lugar e, bem é aqui que entram os periódicos científicos: eles publicam artigos científicos de uma determinada área e quanto maior a relação entre o rigor na revisão e o número de acessos e de citações por outros cientistas sobre o que é publicado por lá, maior será o seu fator de impacto, isto é, o fator de credibilidade de um determinado periódico científico dentro da comunidade acadêmica. Isso movimenta uma indústria bilionária, como já discutido nos episódios dois e três do ccultcast.

A Nature e a Science têm fatores de impacto altíssimos. Por isso, quando algum estudo aparece em um desses dois periódicos, o peso sobre o que eles alegam muda bastante. Mas a Nature e a Science estão sob um guarda-chuva editorial enorme, que engloba outros periódicos que não possuem, necessariamente, os mesmos fatores de impacto [4]. Como comparação, no Scimago Journal & Country Rank, o Cell Discovery, onde a correspondência sobre a evidência de cura para a diabetes tipo 2 foi publicada tem fator de impacto é 59, enquanto o fator de impacto da Nature é de 64,4 [5] e ambos estão sob o mesmo grupo: Springer Nature, ainda que guardem origens diferentes, como apontou a Ana Bonassa, do Nunca Vi 1 Cientista nesta sequência no X/Twitter.

De todo modo, o estudo em si foi realizado analisando a viabilidade se de implantar ilhotas pancreáticas [5] para estimular a secreção de insulina pelo organismo humano e, assim, curar a diabetes. Só que o estudo foi em apenas um paciente — o que, evidentemente, não pode ser tratado como a cura da diabetes nem de qualquer outra doença que passe por uma pesquisa científica séria. Portanto, ainda estamos longe de uma cura para a doença, ainda que tenhamos resultados promissores.

O que o episódio mostra é só mais uma evidência da importância de se respirar muitas vezes antes de sair por aí divulgando informações deturpadas. Em um mundo infodêmico há tempos, a rapidez e os interesses valem mais do que a correção da informação e ter um ceticismo saudável sobre essas questões é fundamental para saber lidar com informações tão importantes. Afinal, quem transformou uma correspondência sobre os resultados de uma pesquisa em resultado definitivo não foram os seus autores.

. . . . .

[1] Dados do IDF Diabetes Atlas 2021, disponível em: https://diabetesatlas.org/atlas/tenth-edition

[2] Sempre é recomendável ter o guia de detecção de mentiras de Sagan em mãos: https://ccult.org/o-kit-de-deteccao-de-mentiras-de-carl-sagan/

[3] O significado de alguns termos de pesquisas científicas pode ser conferido aqui: https://ccult.org/o-significado-de-alguns-termos-relacionados-com-a-publicacao-de-uma-pesquisa-cientifica/

[4] Os critérios de impacto podem variar dependendo dos critérios adotados. Sobre isso, vale a leitura deste texto da Mettzer: https://blog.mettzer.com/fator-de-impacto

[5] Como pode ser conferido aqui: en.wikipedia.org/wiki/Nature_%28journal%29

. . . . .


O ccult.org é um projeto de divulgação científica independente sobre temas de cultura científica e ensino de ciências da natureza criado e mantido por F. C. Gonçalves desde fevereiro de 2019. Conheça o projeto.

Você pode contribuir financeitamente com o ccult.org. A partir de R$ 1 por mês, você ajuda o projeto a crescer cada vez mais, recebe brindes especiais e ainda concorre a prêmios exclusivos! Acesse: apoia.se/siteccult e saiba mais.

Acompanhe o ccult.org no Facebook, Instagram e Mastodon.

Mais do ccult.org