ESTANTE DO CCULT.ORG: A ridícula ideia de nunca mais te ver
Em muitas medidas ao longo de nossa existência, o luto nos atravessará como um trem de ferro na contramão e terá o destino certeiro: atingirá exatamente aquilo que nos é mais precioso e, por isso mesmo, aquilo que nos toca de um jeito tão exclusivo que é irreproduzível. No entanto, falamos do luto como se ele fosse uma entidade abstrata e que atinge apenas o outro, nunca a nós mesmos. Se nada é mais humano do que morrer, conhecer o luto de Marie Curie a eleva a um patamar de força e solidão que tornam simplistas as descrições de “primeira mulher a vencer um Nobel” ou “uma das descobridoras da radioatividade”.
Em “A ridícula ideia de nunca mais te ver” (Todavia, 2019, 208 páginas), a escritora espanhola Rosa Montero transpassa pelo luto da morte de seu marido, Pablo Lizcano, descrevendo um dos trechos biográficos mais impressionantes de Marie Curie: o luto de Marie pela morte trágica de Pierre em um acidente em 1906. Pierre fora atropelado por uma carroça desgovernada enquanto caminhava de volta para casa após sair da reunião Associação de Professores das Faculdades de Ciências em Paris. A morte de Pierre ocorreu de forma instantânea e não atingiu em cheio apenas o mundo da ciência: Marie perdera o seu companheiro de trabalho — os dois haviam conseguido um velho laboratório onde trabalhavam em conjunto nas pesquisas com a radioatividade que lhe valeram, junto com Henri Becquerel, o Nobel de 1903 — e, especialmente, o seu companheiro de vida, já que Marie e Pierre se relacionavam há mais de dez anos e tiveram duas filhas. Diante da perda do marido, Marie escreveu um diário com entradas que vão até abril de 1907, um ano após a morte de Pierre e que serviram de uma espécie de pano de fundo para o livro de Rosa Montero.
As 208 páginas do livro estão divididas em dezesseis capítulos e o anexo, que contém as entradas originais do diário de Marie Curie. Montero faz um interessante uso do contexto dos trechos do diário com os aspectos da vida e da obra de Curie ao mesmo tempo em que fala de seu luto. É como se a história da perda de ambas pudesse ser contada não pelas próprias, mas pelo que Montero viu em Curie. Isso torna o livro, por si só, profundo, repetindo quase de forma constante que a nossa única certeza é, quase sempre a mais inesperada de todas.
Rosa Montero vai além do luto pela morte de Pierre para mostrar que Marie Curie passou por outras perdas e lutos em sua vida. A habilidade da autora ao contextualizar momentos importantes da vida de Marie — como os primeiros relacionamentos amorosos vivenciados pela cientista na Polônia, suas crises familiares e, sobretudo, a força interior para que a jovem polonesa imigrasse de seu país natal para a França, enfrentando os seus medos e angústias — tornam a narrativa de toda a história de Curie uma ode à sua força enquanto frequentemente somos lembrados de que a cientista era humana e, por isso, estava sujeita à toda condição que uma mulher, imigrante e, mais tarde, viúva, poderia sofrer numa sociedade altamente machista como a sociedade francesa do início do século XX.
A condição humana de Marie, aliás, é descrita com o auxílio de trechos de outras fontes pesquisadas pela autora. Este é outro ponto interessante do livro: a recorrência a fontes para contextualizar e para detalhar contextos da vida de Curie, antes, durante e depois de seu relacionamento com Pierre. Com o texto de Montero, é possível dimensionar a mulher que foi Curie, muito além da mulher que hoje é reconhecida por seus feitos com a radioatividade.
E é justamente ao discutir a rigidez de Curie que Rosa Montero consegue apresentar um dos pontos altos de seu livro: a figura de Marie Curie e os contextos das dores que teve de suportar. E não é apenas a dor da perda de seu grande amor, Pierre (cuja narrativa de como Marie lidou com o a morte de Pierre nos primeiros dias mostra a profundidade da dor ao mesmo tempo em que permite sentir o quanto a perda foi significativa para a cientista, que não conseguia se desfazer de roupas, documentos e até de restos mortais do marido falecido). Desde as coisas mais simples, como o vestido preto com o qual Marie sempre era vista e fotografada — na verdade, era o seu vestido de noiva que fora planejado para ser utilizado no casamento e no dia a dia no laboratório —, passando pelo momento em que Marie recebeu a cátedra que então era de Pierre (a passagem em que ela descreve a sua sensação é profunda e pouco lembra a cientista de semblante fechado) até o momento em que a luz da paixão recai sobre Curie, que finalmente parecia tentar reconstruir a sua vida, mas que teve que enfrentar diversas tentativas de assassinato de reputação em decorrência de seu romance com o físico Paul Langevin que, somados aos problemas que o uso indiscriminado da radiação então descoberta pelo casal Currie e Becquerel, trouxeram tempos pesados para alguém conhecida por sua determinação.
Rosa Montero é muito feliz em contextualizar a cena social que condenou Marie Curie por suas escolhas e, principalmente, apresentar a cientista como uma mulher que tentava reconstruir a própria vida em meio a um turbilhão de emoções que parecia não ter qualquer compaixão da cientista ao longo de sua vida. A visão humana sobre Marie Curie e, sobretudo, sobre o luto da cientista são, sem dúvida, grandes feitos do texto de Montero. Ao transpassar o seu luto a partir do luto de Curie, Montero converge as memórias de Curie e dela própria em um apego as coisas que, à distância, parecem mínimas, mas que são repletas de significados: a figueira da infância de Pablo, o jardim onde Marie Curie desejaria estar abraçada com Pierre enquanto observava as filhas se divertindo, a última vez em que Marie conversou com Pierre — esta, numa cena absolutamente banal: Pierre se recusara a dar um aumento no salário da empregada do casal e Marie, contrariada, não se despediu adequadamente do marido, sem saber que aquela seria a última vez em que o veria com vida. O texto de Montero torna a figura de Marie Curie muito mais humana e isso a torna ainda mais respeitável por cada um de seus feitos científicos.
Se o texto de Rosa Montero acerta ao trazer Marie Curie como uma figura humana e interpretando as reações e comportamentos de Curie com a sua época, por outro lado, o texto faz uso de um recurso que soa estranho e que nem sempre se justifica no texto: o uso de hashtags. A impressão que passa é que as hashtags serviriam como uma espécie de “marcadores de temas” ou até de “marcadores temporais” ao longo do texto (por exemplo, a autora usa a hashtag #honraropai para mencionar a relação conturbada com o pai de Marie Curie que acabavam por censurá-la e chega a trazer a hashtag #culpa três vezes em um único parágrafo). A questão, neste caso, é que apesar da lista de hashtags no final do livro, elas simplesmente estão por lá. Não existe nenhuma descrição ou índice acessível que permitisse, no ebook, visualizar cada uma das tags no contexto em que elas aparecem. Não que isso retire o brilho do livro de Montero, mas elas trazem um design para o texto que não precisaria estar por lá.
Da dor, Montero extraiu um caminho extraordinário para contar sobre a vida e sobre a morte. Se “morrer é parte da vida, não da morte”, como Montero afirma no início do capítulo “Velhas asas que se desfazem”, é preciso que recordemos que morremos e vivemos muitas vezes em uma mesma vida, mas que a morte definitiva se faz quando não deixamos saudade.
O livro “A ridícula ideia de nunca mais te ver” está disponível no site da editora Todavia e nos principais marketplaces em formato físico e digital.
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Outra obra sobre Marie Curie já apareceu na Estante do ccult.org. Trata-se do livro “Aulas de Marie Curie” e vale a pena conferir como a cientista lecionava ciências da natureza para crianças.
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