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ESTANTE DO CCULT.ORG: Ciência Picareta

Escrever sobre o conhecimento científico é escrever sobre como tentamos compreender a natureza, o universo, o mundo que nos cerca. É discutir sobre como a humanidade se permitiu dar os seus passos para buscar as respostas aos mais diversos questionamentos. E, claro, buscar a reflexão — ainda que nem sempre isso seja explícito — sobre como essa busca do conhecimento científico em ampliar os seus horizontes moldou a cultura e as sociedades ao longo do tempo.

Só que construções humanas não são perfeitas — e em geral, sempre é prudente desconfiar das perfeições — e a ciência não é alheia a isso. A ciência é uma construção humana, modificável em práticas, ritos, consensos; essas modificações também são consequências do tempo histórico e social onde acontecem e, não raras as vezes, tendem a surgir como forma de minimizar os erros ou se adequar a novas questões éticas que surgem numa velocidade assombrosa — vide os usos que a IA pode ter dentro da ciência.

Discutir essas premissas pode parecer uma obviedade desnecessária. Mas até essas obviedades precisam ser repetidas, já que sempre estamos em risco de considerar todos os conhecimentos prontos e toda a confiança depositada naquilo que parece ser fruto do conhecimento científico ou desenvolvido com a maior integridade ética possível. Aliás, é sempre esperado que o conhecimento científico se desenvolva dessa maneira: sob responsabilidade ética dos cientistas e com a melhor intenção em representar a verdade em seus estudos.

Entretanto, se você acompanhou um pouquinho das discussões que envolviam a ciência, por exemplo, durante a fase aguda da pandemia de covid-19 — especialmente em seu início, em 2020 — deve se lembrar das inúmeras soluções propostas para a crise, que incluíam o uso de medicamentos cujos princípios ativos não resolviam em nada o problema, a negação do uso de máscaras e até a proposta de um “isolamento vertical” (que sempre me pareceu mais uma chacota para colocar as pessoas em prédios do que algo que merecia ser discutida por nem estar errada). E em relação aos medicamentos em si, o cloridrato de cloroquina foi a que recebeu maior atenção da mídia, seja pela pressão de governantes irresponsáveis, seja pela difusão de informações incorretas ou até inverídicas que eram envernizadas com um falacioso discurso de embasamento científico. Foi preciso travar uma luta contra as mentiras que inundavam os nossos dispositivos eletrônicos. A luta era ainda mais difícil por um aspecto muito importante: o discurso utilizado era convincente justamente por parecer um discurso científico embasado nos pilares da ética e a busca pelas respostas. Dados que, ao serem apresentados de forma confusa ou, ainda pior, convenientemente manipulada para atender aos interesses de quem o publicava, abriram brechas na confiança entre cientistas e o público em geral.

Infelizmente, nunca estivemos distantes de sofrer com essas práticas de manipulação de dados, informações, resultados. Mesmo antes — e certamente depois — da pandemia de covid-19, ainda sofreremos com essa questão. Por isso, estar atento a práticas de ciência ruim e de ciência picareta é importante não apenas para cientistas, divulgadores científicos ou jornalistas de ciência: é uma necessidade para todos nós que vivemos nestes tempos em que o conhecimento científico tende a assumir o status de verdade absoluta e sempre imune a erros. Essa é a proposta de um livro lançado há uma década e que continua muito atual para o nosso contexto.

Ciência Picareta, do médico e escritor Ben Goldacre (Civilização Brasileira, 2013, 377 p.) é uma obra cujo foco está justamente em práticas que deturpam informações ou conceitos científicos para atender a interesses nem sempre honestos. Apesar do texto envolver quase sempre questões relacionadas ao contexto europeu — especialmente na Inglaterra, onde Goldacre publicou suas colunas no The Guardian — é plenamente possível estabelecer conexões com situações observadas em nosso contexto cultural e entender como algumas práticas de ciência ruim [1] — como publicar artigos científicos em periódicos que não passam por revisões por pares — e práticas de ciência picareta — cujo traço marcante é a interpretação tendenciosa de fatos para atender os interesses de financiadores ou de grupos sociais específicos — são difundidas tão facilmente para o público.

Reprodução.

Dividido em dezesseis capítulos, a obra discute desde a homeopatia até o movimento anti-vacinação (que surge, em grande parte, com a publicação de um artigo recheado de ciência ruim e picareta a respeito das vacinas contra o sarampo, como discutido aqui), passando pela indústria de cosméticos e surpreendentemente discutindo o papel da mídia neste cenário de propagação de desinformação — que, reitero, não começou com a pandemia de covid-19.

A proposta de Goldacre é clara: utilizar argumentos científicos para desfazer equívocos e apresentar explicações mais coerentes para resultados que, em primeira medida, parecem revolucionários (e que por isso mesmo, rendem uma fortuna para empresas, médicos e cientistas envolvidos nessas fraudes). Ao mesmo tempo, o autor procura apresentar maneiras de o leitor refletir sobre como identificar e se defender dessas práticas. Particularmente, a introdução ao capítulo 3, em que apresenta como fazer um hidratante caseiro para demonstrar como a indústria de cosméticos se aproveita do uso de termos como “DNA”, “colágeno”, “cromossomo” e outros para vender seus produtos como verdadeiras revoluções nos cuidados pessoais, é sensacional. Entretanto, faltam ilustrações ao livro. Ilustrar processos seria uma forma muito simples de expressar e resumir os conceitos que o autor apresenta, por exemplo, ao discutir o efeito placebo. Não que o texto de Goldacre seja ruim — muito longe disso, aliás — mas representar os grupos de controle e a ideia de teste cego e duplo-cego seria um bom auxiliar, especialmente levando em conta que o livro é, a princípio, destinado para um público não especializado em ciência.

 A linguagem de fácil compreensão que Goldacre apresenta é outro chamariz, mas que, como qualquer livro que pretende discutir e apresentar formar de o leitor refletir sobre algo, acaba trazendo uma obra relativamente extensa. Não que a leitura se torne densa ou trave (incluído pela ausência de ilustrações): é que é bom saber que você terá em mãos um texto que apresentará detalhes adicionais que, em outras obras sobre o tema, talvez não aparecessem com tanta ênfase. É o caso das refutações que Goldacre traz quando discute médicos, nutricionistas e outras personalidades ligadas a saúde que bem antes do advento do influenciador digital das redes sociais, já fazia os seus estragos ao apresentar, sob uma credibilidade discutível, dicas e apontamentos que influenciavam o público a seguir conclusões muitas vezes opostas ao que era tido como consenso científico. Tudo por conta para continuar a lucrar com desinformação.

E este é um grande acerto de Goldacre: dar nomes aos bois que ajudam a dar força a essa indústria nefasta e inescrupulosa que atenta contra a saúde e o bem-estar de milhões de pessoas todos os dias. Além das personalidades inglesas que o autor critica em sua obra, ele também apresenta uma discussão importantíssima — e que certamente não se encerra em um capítulo de livro, mas que deveria ser um ponto de reflexão de todos nós que, de uma forma ou de outra, divulgamos informações científicas —: até que ponto a mídia é responsável por discursos embasados em ciência ruim e em ciência picareta permaneçam no ar e sejam divulgados abertamente com um alcance muito maior do que o trabalho sério de jornalistas, cientistas, professores e divulgadores científicos? É importante ter o senso de auto responsabilização em quase tudo na vida, ainda mais ao se divulgar informações que sabidamente não são verdadeiras ou cujos riscos são omitidos em nome da venda, da propaganda, do ganho de alguns likes. Mais do que conhecer a picaretagem científica, é importante evitar que ela se propague, ainda mais quando ela se reveste de uma credibilidade que não possui.

O livro “Ciência Picareta” (Civilização Brasileira, 2013, 377 p.) tem tradução para a edição brasileira por Renato Rezende está disponível em formato físico e digital no site da editora e nos principais marketplaces da internet brasileira.

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[1] Leia mais em: https://ccult.org/a-ciencia-ruim-e-a-ciencia-predatoria-utilizam-uma-credibilidade-que-nao-deveriam-possuir/

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F. C. Gonçalves

Flávio “F. C.” Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.

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