Artigos científicos históricos #1

Um artigo científico é uma forma peculiar que cientistas utilizam para se comunicar com outros cientistas. É um gênero textual tão importante quando o romance e a poesia, com a diferença que artigos científicos, em geral, são impessoais e escritos em terceira pessoa do plural — é mais comum um “realizamos” do que um “realizei”. As razões da adoção deste tempo verbal têm a ver com a própria visão de ciência: transmitir a maior neutralidade na narrativa de sua pesquisa e de seus resultados.

Outra característica importante dos artigos científicos é que eles são texto especializados. Isso quer dizer que possuem público específico (os cientistas) e, portanto, utilizam um vocabulário técnico e diferenciado, voltado para defender os argumentos do autor e as interpretações apresentadas por ele para os resultados apresentados.

Os artigos científicos são escritos por um ou mais cientistas e colaboradores. Depois, são apresentados a um periódico científico, que são publicações onde os artigos são publicados. Sabe quando você lê que determinado estudo foi capa da Nature ou da Science? Então, esses são exemplos de periódicos, que diferente de uma revista de divulgação científica, não tem como objetivo informar o público em geral, e sim, outros cientistas. O processo para a publicação de um artigo científico é longo e você pode conferir mais detalhes sobre o assunto em nosso podcast.

Mas isso não significa que outras pessoas fora da ciência não devem ter acesso a esses trabalhos. Primeiro porque qualquer pessoa interessada pode acessar, ler ou pesquisar sobre um determinado assunto relacionado à ciência. Em segundo lugar, em consequência do primeiro ponto, a ciência se torna mais acessível e se distancia de ser uma “Torre de Marfim”, local reservado exclusivamente aos “eleitos” — que invariavelmente são aqueles considerados inteligentes, com excelentes habilidades matemáticas, solitários e bons observadores. E por fim, saber sobre a existência deste tipo material produzido pelos cientistas é uma forma de enculturar cientificamente a população como um todo, especialmente em relação aos termos que tem significados diferentes no contexto científico (uma espécie de falso cognato do senso comum).

Então, nesta linha, por que não conhecer artigos científicos que mudaram a história? É como poder interagir com os cientistas que os propuseram, como se fosse possível ouvi-los discorrer na fonte de suas ideias.

Contudo, há de se considerar alguns aspectos importantes. O primeiro deles é o critério. Afinal, o que é um artigo científico histórico? Uma descoberta? Uma inovação? A proposição de uma teoria? O segundo, é a delimitação. Livros não têm o mesmo papel de artigos científicos, embora alguns sejam tão importantes para o conhecimento científico — como os Princípia, escritos pelo físico inglês Isaac Newton — que poderiam se encaixar no critério de importância histórica. Talvez um terceiro critério seja a contribuição para o conhecimento científico ou desenvolvimento tecnológico (ou os dois). E for fim, poderíamos recorrer a possíveis trabalhos laureados pelo Nobel, embora esse caminho possa ser difícil: nem sempre os vencedores são premiados por um trabalho científico específico, mas pelo conjunto da obra.

Outro aspecto é a disponibilidade a partir dos critérios. Se fosse levado em conta, por exemplo, os maiores experimentos científicos da história, teríamos uma pista a seguir. Contudo, nem todo avanço científico está relacionado a um experimento científico ou a uma tecnologia específica.

De fato, são muitos caminhos e decisões a serem tomadas. Para facilitar, vamos a critérios simples: (i) o artigo está disponível para leitura; (ii) o artigo trouxe uma contribuição significativa para o conhecimento científico e tecnológico; (iii) é considerado um marco histórico dentro do contexto de sua publicação.

Assim, os artigos científicos históricos poderiam ser:

  • Nova entidade morbida do homem (CHAGAS, 1910). Brazil-Medico, Rio de Janeiro, v.24, n.43-45, p.423-428, 433-437, 443-447. 1910. Por que é histórico? Neste artigo, Carlos Chagas apresenta o Trypanosoma cruzi, protozoário responsável pela Doença de Chagas, que compromete o coração e o cérebro de humanos contaminados. Além de descrever a doença, Carlos Chagas descobriu o vetor, isto é, o responsável por ser o hospedeiro do Trypanosoma cruzi: um inseto conhecido como barbeiro, que ao picar o rosto da vítima — daí o nome popular, transmite o protozoário. É um caso único na medicina, já que Chagas determinou o ciclo completo: uma nova doença, o parasita que o transporta e o inseto que o transmitia.
  • On the antibacterial action of cultures of a penicillium with special reference to their use in the isolation of B. influenzæ (FLEMMING, 1929). Por que é histórico? Foi neste artigo que Alexander Flemming apresentou ao mundo a descoberta da penicilina, substância sintetizada de fungos que impede a reprodução de bactérias. Estava desenvolvido o primeiro antibiótico, que salvou (e ainda salva) milhões de vidas em todo o planeta.
  • Die Grundlage der allgemeinen Relativitätstheorie (EINSTEIN, 1916). Annalen der Physik. 49 (7): 769–822. Por que é histórico? Este é o artigo em que Einstein propõe a teoria da relatividade geral, que previu a curvatura do espaço-tempo provocada pela presença de uma massa (e que foi verificada no famoso eclipse de Sobral, em 1919). Mas antes desse, houve outros quatro publicados em 1905 que marcaram Einstein na história da ciência.
  • Association between Zika Virus infection and microcephaly in Brazil, January to May 2016: Preliminary report of a case control study (ARAÚJO, et al., 2016). Por que é histórico? Este foi um dos primeiros artigos a encontrar a relação entre o zika vírus e a microcefalia em recém-nascidos verificada, na epidemia viral ocorrida em território brasileiro em 2016. Estudos como esse foram vitais para a identificação do vetor da doença e para a prevenção de novos casos.
  • Über eine neue Art von Strahlen (Vorläuge Mittheilung). (ROENTGEN, 1895) Sitzunsberichte der physikalisch-medicinischen Gesel lschaft zu Wurzburg (9), 132 (1895). Por que é histórico? Neste trabalho, o físico alemão Willhem Roentgen publicou pela primeira vez sua descoberta a respeito de um novo tipo de radiação, batizada por ele de “raios-X”. Trata-se de uma descoberta histórica por diversos motivos: pela primeira vez, poderíamos ver o lado de dentro do corpo humano ou de materiais (sim, os raios-X são utilizados no controle de qualidade de peças e de diversos objetos). Além disso, a pesquisa com raios-X deu um salto imenso desde a publicação do artigo por Roentgen (mais de oito mil artigos foram publicados nos primeiros anos da descoberta, trazendo um salto de conhecimento poucas vezes visto em uma área da ciência).
  • A structure for deoxyribose nucleic acid (WATSON; CRICK, 1953) WATSON, J. D.; CRICK, F. H. C. A structure for deoxyribose nucleic acid. Nature, v. 171, p. 737-738, 1953. Por que é histórico? Neste artigo, que está relacionado com o artigo Genetical Implications of the Structure of Deoxyribonucleic Acid (Nature, v. 171, 964-967), os dois cientistas britânicos apresentam ao mundo a estrutura do DNA. Há uma controversa interessante na proposição dos artigos, visto que a estrutura da molécula havia sido identificada anteriormente por Rosalind Franklin, que não recebeu os devidos créditos por sua observação realizada a partir da cristalografia de raios-X, que deu origem ao famoso “negativo 51”. Rosalind morreu antes de Watson e Crick serem premiados com o Nobel, em 1962.

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