InícioAdmiramos, mas não entendemos: a relação do brasileiro com a ciência

Admiramos, mas não entendemos: a relação do brasileiro com a ciência

Em meio a tempos sombrios, em que terraplanistas ganham vozes, a astrologia é propagada como delineadora de nossos destinos, os movimentos antivacina deixam suas pegadas pelo mundo e outras formas de negação do conhecimento científico se propagam por aí, é de se esperar com certa apreensão resultados de pesquisas que tentam observar como a ciência e a sua prática são percebidas pela população. Pesquisas com esse interesse acontecem há anos em diversos países. No Brasil, o falecido Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (atualmente incorporado ao de Telecomunicações) realizava, em parceria com diversas instituições, a pesquisa de percepção pública da ciência e tecnologia. Os últimos resultados são esses divulgados em 2015, obtidos após a entrevista com mais de 1600 pessoas que responderam a cento e cinco perguntas relacionadas com temas de ciência e tecnologia. Os resultados apontavam algumas tendências interessantes:

  • Cerca de 80% dos entrevistados tem interesse em ciência e tecnologia, embora 15% dos entrevistados afirmaram que não se informam sobre o tema.
  • A faixa etária entre 16 e 17 anos possui o maior nível de interesse na área: 98% dos entrevistados revelaram ter algum interesse em ciência e tecnologia. O que não é surpreendente, já que é esta faixa etária que tem o maior contato com tecnologias como smartphones, internet e outras tecnologias associadas a elas.
  • Quase 80% dos entrevistados declararam que é necessário aumentar os investimentos em ciência e tecnologia.

Em geral, os resultados apontam uma tendência de crescimento em direção a temas, digamos, positivos para a ciência: o interesse pelo tema, a necessidade do investimento e do desenvolvimento científico, a importância da ciência para a sociedade; entretanto, um ponto a se destacar nesta análise de 2015 é a ideia de que a ciência traz mais benefícios do que malefícios: 73% dos brasileiros acham a ciência “mais benéfica”, contra apenas 4% que a consideram com “mais malefícios”.

O que foi apresentado até aqui, evidentemente, reflete um estado geral, uma média dos resultados. Se levarmos em conta as faixas etárias ou o nível sócio-econômico, os níveis de interesse por ciência e tecnologia sofrem flutuações consideráveis. Sabem quando dizem que uma boa educação faz a diferença? É disso que também estamos falando.

Em março deste ano, o Instituto 3M divulgou o resultado do “3M State of Science Index” ou “Índice Anual da Situação da Ciência”. Aplicado em catorze países (Canadá, França, Alemanha, Japão, Cingapura, Reino Unido, Estados Unidos, Brasil, China, Índia, México,Polônia, Arábia Saudita e África do Sul), o estudo foi realizado com aproximadamente 14 mil pessoas maiores de 18 anos e procurou compreender a imagem, o impacto e as expectativas da população entrevistada acerca da ciência e de suas práticas.

Países participantes do 3M State of Science Index. Os países marcados com o alfinete azul são aqueles considerados desenvolvidos, enquanto os com o alfinete verde, são aqueles que são considerados países emergentes | Reproduzido de 3M State of Science Index 2018 Global Report.

A respeito da visão da ciência, os entrevistados responderam assim o que é ciência. Repare que palavras como “estudo”, “mundo”, “observação”, “entendimento”, “física” e “teste” aparecem com destaque:

Definições de ciência para os participantes da pesquisa | Reproduzido de 3M State of Science Index 2018 Global Report.

Em nível global, os resultados do estudo evidenciam que 87% das pessoas classificam a ciência como algo “fascinante” e 90% se dizem esperançosas quanto ao futuro em relação as possibilidades da ciência. Em contrapartida, um considerável grupo (32%) são céticos em relação a ciência. A neutralidade da ciência, isto é, a prática científica vista como sem impacto para a sociedade, é negada, em média, por 57% dos entrevistados — o próprio instituto chama a atenção para o fato desse valor ser muito mais alto (77%) entre aqueles que se declaram céticos.

Outro dado que chama a atenção é o nível de confiança que os países tem na ciência. A Índia lidera este índice, com 67,2 pontos, seguida por Arábia Saudita, México, China e Brasil. O último colocado em nível de confiança da população na ciência é, surpreendentemente (para mim, pelo menos) é o Japão, com 49,1 pontos.

Os brasileiros são mais propensos a desejar saber mais sobre ciência em geral. Além disso, O Brasil lidera os resultados sobre a concepção de que a ciência é muito importante para a vida cotidiana — 72% no Brasil contra 46% no mundo.

Entretanto, aqui surgem alguns resultados que a meu ver precisam ser amplamente debatidos no cenário da ciência e do acesso à informação científica (divulgação científica, estou falando com você).

Celina Turchi, pesquisadora brasileira | Revista Time

A respeito da pergunta: “No Brasil, as pessoas querem jantar e conversar com…”, os entrevistados tinham quatro opções de ambos os sexos: Marcos Pontes, o primeiro astronauta brasileiro, e Neymar Jr. (sim, o próprio). A aposta na opção pelo jantar com Neymar teve 51%, isto é, mais da metade da população acredita que entre conversar com um ex-astronauta ou com um jogador de futebol, as pessoas preferirão o segundo. Para efeito de comparação, para os entrevistados canadenses, as opções eram Chris Hadfield e o rapper Drake. Hadfield seria o acompanhante para o jantar de 73% das pessoas de lá. Mas o resultado mais chocante é quando as opções para um jantar são Ivete Sangalo e Celina Turchi, médica epidemologista que descobriu a relação entre a microcefalia e e o vírus zika (e uma das dez cientistas mais importantes de 2016 segundo os editores da Nature). Mas para os entrevistados, a cada dez pessoas, sete escolheriam jantar com a cantora (talvez esperando a cadeira virar?).

A pergunta e as opções não se referem apenas aos gostos pessoais — o que por si só já demonstraria o nosso desinteresse por personagens relacionadas a ciência — mas também o nível de importância real que a ciência tem no cotidiano das pessoas. É inegável que existe o interesse do brasileiro por ciência. Entretanto, o interesse parece ser impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico e não pelo conhecimento científico em si. E essa não é uma falha que pode ser relacionada exclusivamente ao nível ou qualidade de instrução escolar. Existem outros atores que deveriam contribuir aqui, como: políticas públicas de divulgação do conhecimento científico, cientistas que deveriam se aproximar de estudantes do ensino básico, empresas de mídia que poderiam contribuir com o debate ou simplesmente com a veiculação de programas ligados a produção científica brasileira.

Já a compreensão sobre o que é ciência e como ela funciona tem resultados realmente preocupantes. Mais de 90% dos entrevistados brasileiros dizem que sabem pouco ou quase nada sobre o assunto. Para se ter uma ideia, o resultado médio é de 86%. É uma quantidade considerável de pessoas que se declaram ignorantes ou quase ignorantes sobre um dos temas mais importantes de nossa sociedade. O desenvolvimento científico implica diretamente na economia, na geopolítica, na forma como vivemos, no que fazemos com o ambiente em nossa volta. Não é uma simples coincidência que países mais ricos sejam aqueles em que justamente há maior desenvolvimento e incentivo as pesquisas científicas. Entretanto, as iniciativas de aproximação entre institutos de pesquisa, pesquisadores e público interessado são pontuais e algumas vezes excludentes. Não existe uma política de aproximação entres esses dois públicos, muito por conta da falta de pessoas que possam intermediá-la. Por isso, a divulgação científica se faz tão importante: ela tem o papel de fazer essa espécie de ponte entre o conhecimento científico e a sua compreensão pela sociedade e deveria, em tese, conseguir adentrar no maior número de segmentos possíveis da sociedade. Insisto: não devemos nos ater a iniciativas pontuais ou que atinjam determinados segmentos já interessados. É necessário sair de nossa bolha. Se há uma tendência geral de admiração e de interesse pela ciência, por que não aproveitar isso de forma efetiva, indo a escolas, divulgando ciência nas ruas, buscando espaço realmente efetivo na TV, rádios e em sites de grande audiência?

O brasileiro gosta de ciência? Sim, gosta. Mas talvez goste muito mais de suas aplicações práticas, facilmente observáveis nas tecnologias em que se aplicam. O brasileiro se interessa por ciência. Sim, mas talvez não saiba onde possa ter acesso a informação e a discussões sobre a ciência. Mudar esse cenário requer investimentos financeiros e educacionais principalmente em divulgação da ciência para todos os públicos. Não se pode mais esperar que iniciativas isoladas resolvam um problema que é cultural: a ciência precisa deixar de ser algo reservado aos destinados ao “olimpo” e se tornar algo como uma partida de futebol. Relevância cultural. Jantar com alguém que já viu o planeta do espaço é algo que deveria, no mínimo, ser tão importante quanto estar com alguém que fez um gol em final de copa do mundo.

Para saber mais:

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F. C. Gonçalves

Flávio “F. C.” Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.

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