Máquinas de calcular não são uma novidade no mundo. Desde a invenção do ábaco pelos chineses – provavelmente 600 a. C -, diversos instrumentos para facilitar os cálculos foram inventados e aperfeiçoados. Exemplos não faltam: a máquina de calcular de Leibniz (1671), primeiro instrumento mecânico capaz de realizar as quatro operações básicas da matemática sucedeu a “pascalina”, máquina criada pelo matemático e filósofo Blaise Pascal (1623-1662) e que conseguia realizar a soma de até três parcelas de números entre 0 e 999 999. Entretanto, eram instrumentos pesados e caros e nem sempre eram úteis para resolver problemas mais complexos, como cálculos que envolviam raízes ou expressões diferenciais. Daí vem a utilidade dos logaritmos, ferramenta matemática criada por John Naiper (1550-1617) anos antes do surgimento das máquinas propostas por Pascal e Leibniz: com os logaritmos, é possível transformar multiplicações em adições e divisões em subtrações, o que costuma facilitar o processo envolvendo os cálculos.
As calculadoras digitais só chegaram ao mercado nos anos de 1970 e logo se popularizaram. Mas como outras ferramentas de inovação (a.k.a. internet e, especificamente, a Wikipédia) são vistas com maus olhos quando o assunto é o seu uso em sala de aula, especialmente no ensino de ciências e de matemática. Duas afirmações são utilizadas como justificativa para a proibição de seu uso (que valem para as calculadoras comuns e para as calculadoras científicas): (1) não é permitido utilizar calculadoras nos vestibulares e no Enem, logo, o aluno deve ser capaz de desenvolver seu raciocínio matemático sem a ajuda deste recurso (e esse tipo de pensamento obviamente é refletido pelos alunos, como mostra esse artigo com uma pesquisa sobre o tema com alunos do 3º ano do ensino médio ) e (2) calculadoras não ajudam os alunos a aprenderem as operações ou manipulações algébricas necessárias para a resolução de um problema matemático.
A primeira alegação tem um fundo de verdade e a segunda alegação não se sustenta como veremos a seguir. Mais do que preparar alunos para exames de ingresso em universidades, as escolas precisam preparar os alunos para a vida além dos muros escolares. As tecnologias digitais estão irremediavelmente presentes no cotidiano de todos e acessíveis, como no caso das calculadoras, nos telefones celulares que 90% dos jovens brasileiros entre 9 e 18 anos de idade possuem . Os cálculos de notas, pontuações, fechamentos de médias: tudo isso passa, em algum momento, pelo uso de recursos de cálculos com calculadoras. Por que insistir em negar o seu uso como ferramenta auxiliar no ensino?
Repensando o ensino com as calculadoras
Charles, o mundo não é mais o mesmo.
Clássica fala de Logan no filme homônimo de 2017.
O mundo atual exige que as pessoas sejam capazes de lidar com a enxurrada de informações provenientes de diversas fontes. Lidar com essas informações significa analisá-las e compará-las com a realidade ou com as possibilidades reais que podem ser estabelecidas a partir do que se espera que aconteça. Afinal, modelos matemáticos e conhecimentos teóricos estão aí para serem utilizados e não servem apenas para preencher os currículos escolares. O conhecimento científico é uma forma eficaz de pensar e de resolver problemas.
E é aqui que há a conjunção ensino-tecnologia ganha corpo. Exemplificar a realidade é uma aplicação interessante que as tecnologias digitais têm no ensino, especialmente de disciplinas de ciências da natureza. Imagine discutir tópicos elementares de estatística, funções matemáticas, correlações e toda a sorte de conceitos científicos no momento em que o mundo – mais uma vez – depende do conhecimento científico para retomar ao que entendíamos como normalidade. Nesse contexto, por exemplo, as calculadoras são uma excelente ferramenta para cálculos complexos ou que exigem a maior precisão possível. E neste caso, nem é preciso utilizar exclusivamente calculadoras digitais ou aplicativos para celular com essa finalidade: é possível aprofundar o aprendizado utilizando ferramentas como programas de plotagem de gráficos ou de elaboração de planilhas, que em muitos casos são gratuitas e facilmente acessíveis de qualquer dispositivo, mesmo sem conexão com a internet.

Outro exemplo é o uso da calculadora no ensino por investigação. Este modelo de ensino se aproxima muito de uma investigação científica: geralmente parte de um problema – que pode, inclusive, partir dos alunos – para então prosseguir na busca de informações, dados para serem analisados e propiciar uma conclusão sobre o assunto. Neste sentido, a calculadora passa a ser uma ferramenta de auxílio e os alunos têm liberdade de definir o momento em que recorrerão a este recurso.
Além destes, outras opções de uso de calculadora no ensino envolvem jogos numéricos, como jogos de contagem, multiplicação de números decimais e até atividades que estabeleçam o “dígito quebrado”, isto é, a proibição do uso de uma ou mais teclas de calculadora, de modo a provocar o pensamento dedutivo e as relações matemáticas estabelecidas entre as teclas “operacionais” e aquelas “quebradas”.
Evidentemente, não se espera que as calculadoras substituam os professores. Tampouco que façam com que o aprendizado de conceitos e de operações matemáticas sejam tratadas com indiferença. O que se espera é que as calculadoras sejam mecanismos que potencializem o aprendizado matemático, mas também, a interpretação dos resultados obtidos – incluindo aqui eventuais aspectos conceituais de outras disciplinas (por exemplo, se alguém faz um cálculo com o auxílio de uma calculadora para a massa de um inseto e obtém 200 kg, há um erro: não importa se as operações foram feitas na ordem correta, esse valor não corresponde a realidade).
O que apontam as pesquisas no ensino sobre o uso de calculadoras
Uma breve revisão nas pesquisas sobre o uso de calculadoras no ensino de matemática e no ensino de ciências aponta que o uso dessa ferramenta potencializa o aprendizado. Este artigo discute uma pesquisa realizada em Portugal com dois grupos de alunos do 3º e 4º anos do ensino fundamental mostrou que o grupo que utilizou calculadoras por longo períodos se saía melhor em análise de resultados, operações com números negativos, divisões com resto e até operações relacionadas as finanças . Outra pesquisa (RUTHVEN, 1994), realizada com alunos das séries finais do ensino fundamental no Reino Unido, mostrou que os alunos que utilizavam calculadoras tinham melhores resultados quanto à resolução dos problemas em si, isto é, eram capazes de chegar aos resultados finais corretos, mas tinham as mesmas dificuldades de discutir e de analisar os resultados que alunos que não utilizavam calculadoras com a mesma frequência . Além dessas, outras pesquisas na europa e na américa do sul indicam que alunos que não usam calculadoras com frequência não sabem realizar mais cálculos do que aqueles que utilizam o equipamento com maior frequência .
No fim das contas – com o perdão do trocadilho – o uso de calculadoras é benéfico aos estudantes e por si só, não é capaz de resolver os grandes problemas que enfrentamos quanto a interpretação de informações e a análise de dados, justamente porque a parte mais importante – conseguir analisar e tirar conclusões sobre o que se analisa – não pode ser obtida simplesmente numa máquina de calcular.
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Para saber mais:
- ALKIMIN, T.S.G. USO DA CALCULADORA NAS AULAS DE MATEMÁTICA: POSSIBILIDADES E PERCEPÇÃO DE LICENCIANDOS E PROFESSORES. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá, 2013 (Monografia).
- RUTHVEN, R. Pupils’views of calculators and calculation. In: PME 18, vol.4, Lisboa, Portugal. 1994
- SANTANA, J. E. B; MEDIEROS, K. M. O uso da calculadora científica nas aulas de Matemática do Ensino Médio: explorando a resolução de problemas. Revemop, Ouro Preto, MG, v. 1, n. 3, p. 345-360,set./dez. 2019.
- História das máquinas de calcular – Revista Fapesp: https://revistapesquisa.fapesp.br/maquina-de-calcular/
- Uso de internet, televisão e celular no Brasil – IBGE: https://educa.ibge.gov.br/criancas/brasil/2697-ie-ibge-educa/jovens/materias-especiais/20787-uso-de-internet-televisao-e-celular-no-brasil.html
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F. C. Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.