Retratação de artigos científicos e a autoproteção da ciência

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Confiar na ciência não deveria ser um dogma: este tipo de conhecimento passa por uma série de processos de verificação e de validação perante a comunidade científica, que busca encontrar a melhor resposta para as perguntas que surgem a respeito do que é pesquisado pelos cientistas. É como uma peneira, que permite separar aquilo que nos interessa do que não deveria nos servir.

Esse processo de “peneirar” o conhecimento científico é complexo e passa por diversas etapas, como discutido aqui [1]. No melhor cenário, todos nós conheceríamos os mecanismos de funcionamento da “peneira”. Isso nos permitiria analisar com maior criticidade as informações sobre ciência que nos são passadas pelos meios de comunicação ou que nos chegam pelas redes sociais, especialmente aquelas que nos chegam referenciando artigos científicos que trazem conclusões muito destoantes da realidade — se você acompanhou a busca por informações sobre a covid-19 na fase aguda da pandemia certamente se deparou com artigos científicos que concluíam a eficácia de medicamentos que, em realidade, eram completamente ineficazes para tratar a doença.

Erros podem acontecer — lembre-se sempre de que a ciência é uma prática humana. A questão é como a cultura da ciência lida com isso. Afinal, a confiabilidade do conhecimento científico está em jogo; portanto, mecanismos de correção precisam ser desenvolvidos para evitar que essa confiabilidade seja abalada. E é importante lembrar que a confiança no conhecimento científico é uma das razões pelas quais o adotamos como parâmetro para o tratamento de doenças, a melhoria de políticas públicas e o desenvolvimento de novas práticas em educação, entre tantas outras coisas.

Essa é uma das razões pelas quais existe o refinamento, a verificação antes da publicação de um artigo científico em um periódico especializado. Contudo, a seleção — ou a nossa peneira — pode falhar e alguns artigos que não deveriam ser aprovados para a publicação acabam sendo publicados e chegam ao público em geral.

Quando um artigo é publicado um erro grave o suficiente para invalidar as suas conclusões ou cometeram plágio [2] ou o artigo tem conflitos éticos não informados e que poderiam enviesar as conclusões, o artigo científico sofre o que é chamado de retratação. A retratação significa que parte ou todo o artigo deixa de ser cientificamente válido, isto é, a retratação, de certa forma, inutiliza um trabalho científico. Artigos retratados são marcados para sempre com essa informação (em geral, revistas científicas marcam o texto com a palavra “retratado” ou “retracted” e não disponibilizam o texto integral para acesso, restando o acesso ao título do artigo e nome dos autores e o tipo de retratação).

Exemplo de artigo retratado | Reprodução de: https://www.nature.com/articles/s41598-021-85227-0

Retratar artigos é uma espécie de punição para autores que produzem trabalhos científicos que não seguem critérios próprios da ciência. É uma punição grave e que deveria ser indicada com ênfase, sobretudo quando artigos que ganham certa notoriedade são invalidados por este processo — vide o caso das produções do médico francês Didier Raoult, que defendia a eficácia da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 (e ganhou notoriedade por isso) e que teve todos os seus trabalhos sobre o tema retratados [3], além de sofrer punições administrativas e a responder inquéritos criminais na França [4]. O próprio Didier defendia o argumento a favor da cloroquina com base em preprints [5] que foram retirados do ar por seus autores [6] (não sem antes classificar o trabalho retirado como “muito bom” ).

A retratação é uma mensagem da comunidade científica de que determinado trabalho não deve ser levado em consideração por suas falhas. É um mecanismo de autocorreção, mas também de autoproteção. Sem ele, não haveria garantias de que um trabalho publicado pudesse ser desconsiderado pela comunidade científica depois de publicado (além de tornar a percepção dos problemas presentes nos textos mais difíceis de serem identificadas).

Por isso, é sempre bom ficar de olho em como resultados são apresentados e como se desenvolvem dentro da comunidade científica. Novas explicações surgem todos os dias, mas nem todas sobrevivem ao juízo da realidade.

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Para saber mais:

  • Retraction Watch, site que monitora e discute as principais retratações de artigos científicos e suas consequências para estudos e a sociedade [em inglês]: https://retractionwatch.com/

[1] https://ccult.org/ccultcast-dois-os-artigos-cientificos/
[2] Sobre a questão do plágio na ciência: https://ccult.org/a-questao-do-plagio-na-ciencia/
[3] Como discutido aqui: https://retractionwatch.com/2020/04/06/hydroxychlorine-covid-19-study-did-not-meet-publishing-societys-expected-standard/
[4] Após as investigações, Didier Raoult reconheceu os erros em seu estudo, sem, contudo, deixar de recomendar o tratamento de covid-19 com a substância: https://super.abril.com.br/saude/maior-defensor-da-cloroquina-medico-frances-admite-erros-em-estudo/
[5] Sobre o que são preprints: https://ccult.org/o-significado-de-alguns-termos-relacionados-com-a-publicacao-de-uma-pesquisa-cientifica/
[6] Como pode ser conferido aqui: https://retractionwatch.com/2020/05/21/french-hydroxychloroquine-covid-19-study-withdrawn/

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