“A ciência nunca resolve um problema sem criar pelo menos outros dez.”
George Bernard Shaw
Não se pode negar o papel que o avanço do conhecimento científico teve nas mudanças sociais e culturais que a humanidade vivenciou nos últimos séculos, e, em especial, nos séculos XX e XXI. A pílula anticoncepcional mudou a forma como as mulheres encaravam a si mesmas, o desenvolvimento de novos materiais propiciou inúmeras aplicações tecnológicas, descobrimos vacinas e tratamentos eficazes para diversas doenças, aumentando a expectativa de vida em diversas regiões do planeta.
Esses são poucos – mas relevantes – exemplos de como a evolução do conhecimento científico trouxe soluções para problemas que antes pareciam não ser solucionáveis. Entretanto, as aplicações da ciência em seu próprio desenvolvimento ou no desenvolvimento tecnológico nem sempre são benéficas para todos. A ideia de que o conhecimento científico é sempre perfeito é mais perniciosa para a própria ciência do que parece. Se as pessoas se convencem de que tudo que é científico é bom – mesmo sem saber o que significa exatamente “ser científico” – não questionarão aplicações tecnológicas que vendem soluções com o verniz da ciência. Isso já nos causou problemas ao longo da história: o DDT (sigla de diclorodifeniltricloroetano) foi o primeiro pesticida moderno, aplicado principalmente no combate aos vetores da malária, dengue e febre amarela . Entretanto, o uso do DDT está ligado ao aumento de casos de câncer e de infertilidade e de doenças pulmonares na população humana nas regiões onde foi aplicado (e essa foi uma das razões pelas quais o DDT foi proibido a partir dos anos de 1970 e, em 2009, no Brasil). Outro exemplo, este mais recente ligado ao desenvolvimento científico e tecnológico: a manipulação das emoções promovida pelo Facebook em um experimento social no mínimo controverso acendeu o alerta de como o conhecimento sobre as emoções humanas e o nosso comportamento social pode ser utilizado como ferramenta de manipulação de massas sob os mais diversos interesses.
E a sempre necessária discussão sobre o papel e as implicações do conhecimento científico sobre a vida das pessoas ganhou no novo capítulo com os lançamentos dos satélites do projeto Starlink, bancados pela SpaceX, a mesma empresa que desenvolveu o foguete e a capsula que colocou os astronautas Douglas Hurley e Robert Behnken em órbita no último dia 31 de maio .
Elon Musk, o bilionário CEO da SpaceX tem planos ambiciosos: iniciar a colonização humana em Marte até 2050, baratear o custo de transporte de cargas e de seres humanos para o espaço e, talvez o plano mais controverso de todos, oferecer internet de alta velocidade em conexões via satélite, especialmente em áreas remotas ou cuja infraestrutura para a conexão em alta velocidade ainda não tenha sido implementada.

Em um primeiro momento, isso seria excelente: oferecer acesso à internet para cada vez mais pessoas, sem a necessidade de se construir ou disponibilizar uma estrutura física com cabos, postes, centrais, servidores, etc. que levará muito tempo para ser implementada não é algo que qualquer pessoa sensata seria contrária. Além disso, essa seria mais uma amostra de como o conhecimento científico é poderoso: com todo o nosso conhecimento sobre órbitas de satélites, ondas eletromagnéticas, geografia, podemos levar conhecimentos e inclusão digital para mais pessoas.
Mas se não há aplicação do conhecimento científico imune a problemas, o projeto Starlink é um exemplo disso. Veja a imagem a seguir. Ela foi registrada a partir dos telescópios do projeto AURA, localizados no Chile.

Os riscos observados na imagem se devem ao trânsito dos satélites Starlink sobre o céu chileno. Sim, satélites: a previsão é que quase 12 mil satélites sejam lançados até o fim do ano que vem. A cada lançamento, dezenas de satélites são colocados em órbita. E aí começa um dos maiores problemas provocados pelo Starlink: enquanto orbitam a Terra, seus painéis de captação da luz solar – que fornece energia para que os satélites funcionem – refletem tanta luz que atrapalham a observação do céu. Em um primeiro momento é até encantador ver os “trens de satélites” (não temos um termo para definir o coletivo de satélite, temos?) passando pelo céu noturno.

Mas esse encantamento esconde os problemas para a astronomia observacional e para a radioastronomia. O céu noturno é um elemento cultural chave para muitas civilizações. Além disso, os telescópios na Terra precisam das melhores condições possíveis para registrar as imagens que astrônomos estudarão. Com o aumento dos satélites da SpaceX orbitando o planeta, a prática de observar o céu pode ficar simplesmente inviável: mesmo tratando as imagens obtidas por computador, não há como reverter os efeitos negativos que os satélites trazem quando aparecem. A radioastronomia, por sua vez, poderá sofrer com as interferências nos sinais enviados e recebidos, colocando anos de coleta de dados sob risco. E se você não sabe o que interferências em sinais de radioastronomia podem ocasionar, recomendo que leia sobre o “efeito wow!”.
Se o projeto continuar como está – especialmente sem ouvir o que astrônomos pensam e quais as suas sugestões para o tema -, não vai impactar apenas na observação do céu noturno. Estudos que dependem de satélites em órbita, como as pesquisas climáticas, podem ficar severamente prejudicadas não apenas pela interferência, mas também pelo cada vez risco cada vez maior de colisão de satélites na órbita da Terra. Se hoje a questão do lixo espacial – que basicamente é tudo aquilo que orbita a Terra sem qualquer utilidade prática – é uma das razões pelas quais explorar o espaço é tão caro, imagine com milhares de satélites orbitando o planeta, cujo tamanho e massa são potencialmente catastróficos se colidirem com um satélite ou telescópio espacial.
Elon Musk prometeu incorporar soluções que diminuam a interferência dos satélites Starlink no céu noturno, mas não deu um prazo específico para que isso aconteça. Independentemente das próximas levas de satélites do projeto interferirem menos nas observações astronômicas, é importante sempre sempre pensarmos nos impactos que os conhecimentos científicos terão sobre as áreas de nossas vidas. Nenhuma aplicação do conhecimento científico é totalmente benéfica para todos, principalmente quando eles querem parecer assim. O que não significa, é claro, que o conhecimento científico não é válido: ele só não deve ser incontestável.
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Para saber mais:
- Site do projeto Starlink: https://www.starlink.com
- Ainda sobre a neutralidade da ciência: http://www2.fe.usp.br/~mbarbosa/neutralidade.pdf
- Experimento social de manipulações de emoções promovido pelo Facebook: https://meiobit.com/291259/facebook-experimento-manipulacao-emocoes-usuarios
- Os problemas que os trens de satélite da SpaceX tem provocado na astronomia (em inglês): https://www.theatlantic.com/science/archive/2020/02/spacex-starlink-astronomy/606169
- A licitação bilionária para financiamento de internet via satélite: https://meiobit.com/420847/spacex-starlink-30-dias-provar-fcc-internet-espaco-funciona
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F. C. Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.
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