Este texto é fruto da parceria de criação de conteúdo com o projeto “Companhia na Educação”, da editora Companhia das Letras. O projeto cede materiais literários para a criação de conteúdos educacionais que podem ser utilizados por professores e instituições de ensino de todo o país. O texto a seguir não foi revisado ou endossado pela editora.
Se você acompanha o ccult.org, sabe que defendemos que a ciência é um empreendimento humano. E como tal, está sujeito aos mesmos problemas e as mesmas virtudes que a sociedade possui. Ainda assim, a ciência é uma de nossas melhores formas de melhorar a vida e de acelerar o progresso humano. A prática científica também consiste em um constante aperfeiçoamento de si mesma, desde os seus métodos até os seus conhecimentos – mesmo os mais fundamentais.
Por isso, compreender a ciência vai além de compreender um conceito científico. Além de conceitos fundamentais, é importante que os contextos históricos e sociais relacionados com o conhecimento científico discutido seja abordado. Questões sociais não são – e nem deveriam ser – exclusividade de disciplinas das áreas de ciências humanas.
Quando se discute o acesso as universidades, pouco se fala sobre a vida acadêmica e a desigualdade no processo de seleção dos candidatos ao ingresso no ensino superior. Pessoas negras compõem mais da metade da população brasileira [1], mas possuem uma proporção desigual em relação ao acesso e formação no ensino superior: quase 25% da população branca com mais de 25 anos possui ensino superior, enquanto esse índice entre a população negra está próximo a 10%. Em proporção aos alunos matriculados, este estudo do IPEA publicado em 2019 [2] revelou que apesar do aumento de 400% no número de matrículas de pessoas negras, a sua proporção entre os estudantes do ensino superior brasileiro chega a quase 37%. Ou seja: três em cada cinco estudantes das universidades brasileiras são pessoas brancas. Não é nem um pouco temerário pensar no quanto isso pesa para aprofundar o cenário já desigual em que a população negra se encontra em nossa sociedade.
A permanência nas universidades é outro ponto de manutenção de desigualdades. Passar pelo ensino superior é uma tarefa árdua sob muitos aspectos: acompanhar o desenvolvimento do curso, que é muito mais rápido e profundo que na formação básica, ao mesmo tempo em que é necessário lidar com toda sorte de despesas (moradia, transporte, alimentação, serviços, impressões, materiais do curso). Garantir o acesso não é garantir que pessoas negras se formem e passem a exercer suas profissões e tenham alguma ascensão econômica. Infelizmente, o ensino superior reflete as desigualdades que o ensino básico possui. Um exemplo, relacionado ao ingresso no ensino superior, é apresentado na Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (2019) [3]: enquanto apenas um terço (33%) dos alunos negros do ensino básico de escolas públicas ingressaram no ensino superior, 72% dos alunos negros que cursaram o ensino privado conseguiram o acesso à universidade.
Os números acima são um pequeno panorama da desigualdade social que pessoas negras enfrentam em termos educacionais e, que claro, refletem as desigualdades afligem, há séculos, a população negra. Contudo, as desigualdades não devem servir de estigma para a população negra nem espaço para o pensamento racista de inferioridade intelectual e genética que coloca no negro a culpa pela condição desigual em que se encontra [4]. Especialmente se levarmos em conta os aspectos científicos e tecnológicos relacionados com a cultura negra.
Como bem conta James Gleick em seu aclamado “A informação” [5], uma parcela significativa de tribos africanas possuía um complexo sistema de comunicação promovida pelo bater de tambores. Informações complexas eram transmitidas por grandes distâncias e entre tribos diferentes a partir da identificação da frequência, ritmo e cadência das batidas. Isso muito antes da criação do código morse pelo inventor estadunidense Samuel Morse. Além de sistemas de comunicação, o continente africano desenvolveu um interessante sistema de unidades de medida padrão para massa e comprimento muito antes de o Sistema Internacional de Unidades ser proposto [6].
No Brasil, importantes intelectuais negros formaram o pensamento acadêmico brasileiro, especialmente no século XX. Nomes como o de Milton Santos, um dos grandes geógrafos da história, Lélia Gonzalez, que foi filósofa e antropóloga, Sueli Carneiro, filósofa, Abdias do Nascimento, poeta e escritor, além de Conceição Evaristo, linguista e escritora e de Carolina Maria de Jesus, escritora e poetisa são nomes de pessoas importantes dentro da intelectualidade negra e latino-americana.
Discutir o papel dos trabalhos de intelectuais negros do passado ou de cientistas negros do presente é uma tarefa necessária, não apenas para apresentá-los, mas também para dar vida a intelectualidade de uma parcela significativa da população marginalizada. Neil deGrasse Tyson ilustra bem como a desigualdade social é um assassino de futuros [7]:
“Se Isaac Newton tivesse nascido na África, acho que nunca teria conseguido chegar aonde chegou. Iria só se preocupar em não morrer. É verdade que ele se mudou para o campo a fim de evitar a peste em Londres, então sabia, sim, o que fazer para sobreviver nesse contexto. Mas, se perdermos gente assim na infância, estaremos reprimindo o avanço da nossa própria civilização. Uma das grandes tragédias da atualidade é que nem todo mundo tenha a oportunidade de ser tudo o que pode.”
O êxito na vida de pessoas negras pode ser visto sob diversos pontos de vista: desde a romanização, que transforma a superação de obstáculos em uma questão de coragem pessoal, ignorando todos os aspectos que interferem no surgimento das dificuldades que são apresentadas como barreiras transponíveis por qualquer um que tenha força de vontade (o que, evidentemente, é uma falácia) até a visão sob o próprio ponto de vista da vida dos negros. E aqui a obra “O carro do êxito”, de Oswaldo Camargo (Companhia das Letras, 2021, 143 páginas) é uma excelente ponte para tratar do assunto, incluindo a vivência e o êxito em questões relacionadas a prática científica e suas consequências, como as interpretações errôneas e distorcidas (como o caso da visão seletiva que apropriou a teoria da seleção natural para difundir o ideal eugenista que, mais tarde, desembocou no nazismo). Por se tratar de um livro de contos que retratam pessoas e a própria vida de seu autor, é possível apresentar a sua leitura em sequências didáticas diferentes e que privilegiam a interdisciplinaridade.

O conto “Medo”, por exemplo, retrata Matheus, que enquanto auxiliar da igreja matriz de Nossa Senhora de Lourdes, observava a distância a seleção dos jovens que seriam escolhidos pelo padre Miguel para representar um dos apóstolos. Matheus, jovem negro que se orgulhava em limpar a igreja e auxiliar nas tarefas diárias, tinha certeza de que não seria escolhido para ser um dos apóstolos. Solitário, enquanto observava ao longe a reunião dos jovens que aguardavam o anúncio do padre sobre a escolha, é chamado a comparecer a presença do pároco, que então conta a Matheus que ele seria um dos apóstolos. As emoções de Matheus, da incredulidade ao medo da escolha, da solidão a angústia por viver algo que nunca imaginara – que são maravilhosamente descritas por Oswaldo de Camargo – se assemelham em muitos aspectos à prática científica, ao ingresso nas universidades e a vida acadêmica como um todo. Uma sugestão de roteiro de aula com o conto “Medo” é disponibilizada no link abaixo:
Roteiro de aula: O conto “medo” e as visões sobre a carreira científica
Além do conto “Medo”, outros contos do livro “O carro do êxito” são interessantes para debater a intelectualidade negra. Em especial, o conto de abertura, “O menino do oboé”, que conta a história de um jovem e a sua habilidade musical que deixa as autoridades locais incrédulas, enquanto a manifestação cultural e artística é muito natural em seu contexto familiar. Mas a incredulidade é manifestada em um trecho muito interessante, que narra a declaração da vereadora Madalena a respeito de como via “o menino do oboé”:
“Não é deslize de palavras, caros amigos, mas esse menino negro, tocando altitudes da ocidental música para outros negros, confirma o que, em certa época, o naturalista Fritz Müller escreveu a respeito do nosso grande Cruz e Souza, quando este era ainda garotinho”

Já discutimos como cientistas de todo o mundo, especialmente da Europa, vinham ao Brasil e faziam toda espécie de estudo científico praticando o chamado colonialismo científico [8] – o que, no século XIX, foi uma das razões para a criação da primeira expedição científica brasileira e seus icônicos camelos [9]. Assim, “O menino do oboé” é um texto que pode servir como introdução para discussão social a respeito da cultura, mas também de visões sobre a superioridade ou inferioridade de povos e etnias, incluindo, as visões científicas sobre o tema [4].
O livro “O carro do êxito” pode ser encontrado nos principais marketplaces da internet brasileira ou pelo site da editora Companhia das Letras .
[1] https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra
[2] http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2569.pdf
[3] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23300-taxa-de-acesso-ao-nivel-superior-e-maior-entre-alunos-da-rede-privada
[4] O livro “Uma herança incômoda”, de Nicholas Wade (Três Estrelas, 2016), discute a questão de raça e de genes e conclui com necessidade de se rechaçar a superioridade entre raças e de se combater o eugenismo.
[5] A Informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada. Editora Companhia das Letras, 2013
[6] Como pode ser conferido no livro “A medida do mundo: a busca por um sistema universal de pesos e medidas”, de Robert P. Crease (Editora Zahar, 2013).
[7] Em entrevista, cuja íntegra pode ser conferida no link: https://www.ufjf.br/ladem/2016/07/01/talvez-o-proximo-einstein-esteja-morrendo-de-fome-na-etiopia-entrevista-com-o-astrofisico-neil-degrasse-tyson
[8] Como pode ser lido a respeito do caso do fóssil Ubirajara: https://ccult.org/descolonizacao-de-fosseis-brasileiros-o-caso-ubirajara-e-algumas-notas-de-cultura-cientifica
[9] Cuja história é descrita no livro “Catorze Camelos para o Ceará”: https://ccult.org/catorze-camelos-para-o-ceara
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Imagem de destaque com montagem de autoria própria a partir de Jornal A Tarde e Companhia das Letras
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F. C. Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.
[…] Publicamos o primeiro material resultado de nossa parceria com a Companhia das Letras! O ccult.org faz parte da rede de Educadores Parceiros da Companhia na Educação, um projeto da editora para a criação e divulgação de materiais educacionais a partir de obras literárias de seu catálogo. E o primeiro material é muito especial: a discussão da intelectualidade de pessoas negras em diversos campos, especialmente o artístico e acadêmico, com alunos do ensino básico. O livro “O Carro do Êxito”, de Oswaldo de Camargo — cujos contos exprimem as vitórias e realizações sob o ponto de vista da negritude e de sua cultura — é o ponto de partida para que as produções intelectuais de homens e de mulheres negras sejam reconhecidas e compartilhadas. Além do texto, você pode acessar um plano de aula para incluir a discussão do tema em aulas de ciências da natureza no ensino básico. Tudo gratuito — é só acessar este link. […]