Eu sou daqueles que acredita que textos e livros mudam pessoas. Ou melhor: textos ampliam horizontes, apresentam novas formas de pensar, imortalizam ideias (o que fazemos com tudo isso é uma boa questão, ok, mas isso fica para outro texto). Numa aula de língua portuguesa, uma charge relativamente simples me faz pensar até hoje. O argumento era o seguinte: a exploração espacial e as grandes navegações exigiam a mesma dose de conhecimento e de coragem sobre o que se propunham explorar.
E não há nada mais humano do que desejar conhecer e tentar enfrentar os seus medos rumo ao desconhecido, seja embarcando numa nave para a Lua, seja numa nau navegando pelo atlântico buscando melhores caminhos para as índias.
A história da exploração espacial é uma de minhas histórias humanas preferidas. Não apenas pelo desejo de explorar o espaço ter feito parte de meus sonhos de infância – e de ser uma das grandes responsáveis por eu ter decidido me graduar em física –, mas pelas histórias incríveis de superação, criatividade, coincidências, luta pelo poder político e econômico. Um livro incrível que explana muitas histórias da exploração espacial é o “Próxima Parada: Marte”, que já resenhamos aqui no ccult livros.
Então, como alguém que tem entre as suas paixões a exploração espacial, resolvi tomar coragem e ir a uma exposição sobre o tema (a coragem, neste caso, foi necessária para conseguir encaixar no orçamento o preço do ingresso, que embora tivesse valido cada real investido, poderia ser proibitivo em outros tempos).
A sensação de surpresa e de incredulidade não se deviam apenas a grandiosidade da exposição – havia réplicas em tamanho real do foguete Saturno V, do módulo de pouso Eagle, de rovers e de tantos outros objetos que fizeram parte das missões Apollo: elas eram geradas especialmente pelos detalhes que iam além dos objetos.

Por exemplo, o primeiro astronauta dos Estados Unidos, Alan Shepard, vivenciou uma situação relativamente constrangedora: o design de seu traje espacial não continha nenhum reservatório para urina ou fezes, já que a missão, a princípio, seria de alguns minutos em órbita da Terra. O problema é que os preparativos para o lançamento, que já são demorados por si só, levaram ainda mais tempo. E claro, a natureza chamou o astronauta, que não teve alternativa senão se aliviar no próprio traje. Nas missões seguintes, já com esse feedback em mãos, os engenheiros da NASA tentaram uma solução nem um pouco trivial: uma fralda emborrachada – que, como você deve imaginar, trouxe ainda mais problemas quando os efeitos de atração gravitacional diminuíram o suficiente para tudo flutuar pelo espaço.

O chamado “efeito tripa” é a grande dor de cabeça para uma exploração espacial. Humanos tem sistema fisiológico, pensam e não necessariamente sabem o que fazer com essas duas coisas. Então, planejar uma viagem espacial é, essencialmente, planejar a sobrevivência, o cuidado com outro membro da espécie enquanto ele estiver longe o suficiente para conseguir fotografar o nosso planeta de corpo inteiro. E isso passa por pensar as tecnologias embarcadas. Cada uma delas, inclusive.

Pense nos capacetes, nas luvas, nas botas, nos computadores e até na alimentação a ser consumida no espaço. Tudo, absolutamente tudo teve de ser estudado e condicionado para que funcionasse no espaço. E olhar para tudo isso com décadas de separação não é só observar a história sendo escrita: é perceber a grandeza do caminho a ser percorrido para que chegássemos até aqui.
É que percorrer o caminho é ter que construí-lo a medida em que se avança. Ele só pode ser construído assim. Por isso, desenvolvimento científico e tecnológico demanda tanto investimento: na maioria do tempo, só dá para seguir adiante quando temos os alicerces bem definidos, isto é, quando temos uma base conceitual que nos permita dar um passo adiante. Pense numa locomotiva que constrói a sua própria linha férrea: sem os trilhos anteriores, ela não consegue seguir adiante.
Não é milagre; apenas decidimos ir.
Anotação de James Lovell, tripulante da Apollo 8, em uma das fotografias registradas durante a missão.
Para chegarmos ao tempo em que é possível fazer lives do espaço e transmitir informação em tempo real pela internet, precisamos antes aprender a usar a estratosfera da lua, a construir foguetes e desenvolver seus combustíveis, a lançar satélites e operá-los da Terra, a desenvolver melhores materiais, a resolver possíveis conflitos de ordem jurídica.

Aliás, um dos pontos altos da exposição foi a imersão no lançamento de um foguete. Os sons. A vibração enquanto a decolagem virtual acontecia. Sensações indescritíveis, claro. Mas, imagine: como é que foi treinar um ser humano para manter a calma e operar os instrumentos enquanto tudo sacudia ao seu redor sem que, essencialmente, você não tivesse qualquer controle sobre o que acontecia? Pois é. Imagine o nível de coragem e de confiança no trabalho alheio que foi necessário para que as coisas dessem certo.


Estar próximo aos itens originais utilizados na exploração espacial durante a corrida espacial é testemunhar a história. Ainda mais quando você está diante de objetos que foram e voltaram da Lua — como os módulos de memória da imagem ao lado (possivelmente, o seu celular possui uma capacidade muito maior do que esses que foram utilizados na exploração espacial). Além, claro, de peças dos trajes, documentos e amostras de rochas lunares. É impossível não se encantar ao observar, de pertinho, uma rocha que estava a 300 mil quilômetros daqui. Nem deixar de perceber a grandiosidade do universo que nos cerca: um pedacinho de rocha que levou anos e anos de esforços para ser coletado e é apenas uma pequena amostra de um dos milhões de objetos celestes que nos cercam. Não é incrível pensar que num universo de bilhões e bilhões de anos-luz de diâmetro, só exista uma pessoa como você nele?
Todo mundo vive a sua epopeia pessoal. Não se trata de dimensionar qual é mais importante, mas sim, de perceber que elas tem muito mais a ver com a exploração do universo do que costumamos perceber.
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F. C. Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.
[…] Tudo começou com um chocolate surpresa. Talvez você não tenha idade para lembrar, mas nos tempos em que as barras de chocolates tinham tamanhos dignos, havia um produzido pela Nestlé que trazia, junto ao chocolate no interior da embalagem, cards em papelão com temas ligados à ciência e a tecnologia. Quando eu tinha uns dez anos de idade, havia conseguido, com a ajuda de um colega de sala, um álbum para colar as os cards e ter a minha coleção de imagens sobre a exploração espacial. Nunca mais olhei um ônibus espacial — e a exploração espacial como um todo — com os mesmos olhos desde então. […]