Memes e o pensamento científico em sala de aula

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Na década de 1950, o físico americano Richard Feynman (eu sei, eu sei) propunha que uma única frase poderia sintetizar todo o conhecimento científico que a humanidade possuía até ali:

TUDO É FEITO DE ÁTOMOS.

Richard Feynman, físico estadunidense vencedor do Nobel em 1965.

De fato, essa é uma forma interessante de sintetizar o conhecimento humano sobre a natureza e a natureza das coisas. Conseguir propor modelos que explicassem como as coisas se formavam foi um dos grandes avanços que o século XX trouxe para a ciência e para a sociedade (contamos mais detalhes sobre a proposição dos modelos atômicos neste link).

 Mas, e se avançássemos um pouquinho e tentássemos, com alguma (pequena) dose de exagero querer sintetizar a comunicação pela internet utilizando algo simples, direto, fácil de ser compreendido pelo maior número possível de pessoas? Se você pensou no meme, parabéns. Não sei se caberia um “tudo na internet é feito de memes”, mas não dá mais para desassociá-los da cultura digital.

Dawkins é um meme. | Reprodução: Museu dos Memes UFF

O termo “meme” é uma criação de um cientista. O biólogo Richard Dawkins (autor de best-sellers, como “O Gene Egoísta”, “Deus, um delírio” e “Desvendando o arco-íris”) propôs que o meme era uma espécie de unidade fundamental da informação – algo que o gene é para a genética, por exemplo. São ideias que se propagam entre os membros de uma sociedade e permitem que essas ideias sejam como um alicerce para ritos ou padrões culturais. Um meme consegue sintetizar contextos, falas, histórias e pensamentos como nenhuma outra linguagem. Daí a sua crescente popularização, especialmente após a década de 2010, quando os memes deixaram de ter personagens fixos de diagramação duvidosa para serem eternizados com uso de frases sobre cenas clássicas, expressões, trechos de desenhos animados.

O meme é uma poderosa ferramenta de comunicação dentro da maior atividade humana já desenvolvida coletivamente. E como sabemos, a internet é um ambiente irremediavelmente presente na vida de todos. Da mesma forma que nossa geração – falo como um sujeito nascido no final da década de 1980 – tinha a energia elétrica e a inflação como algo de nosso dia a dia, as gerações mais novas sentem a internet como algo absolutamente natural, esperado para o seu contexto de vida.

Esquecer deste detalhe é um problema não apenas geracional, mas também pedagógico. Não dá para ignorar o contexto da vida digital de nossos alunos, mesmo que as aulas se deem em um ambiente físico, presencial, enfileirado em carteiras e com lousa, giz e apostilas para nos fazer companhia. A questão aqui tem uma mudança sutil, mas importantíssima: o papel do professor não é mais de transferir conhecimentos, mas de conduzir os alunos por eles. Não é a informação o único resultado a ser obtido; é preciso saber como lidar, onde obter essa informação e como pensá-la de acordo com a realidade que nos cerca.

E se você ainda acha que memes são só uma questão de diversão, um alívio cômico enquanto você rola a tela, esteja ciente de que você está enganado(a). A produção de memes gera uma fortuna para os seus criadores , engajamento político e ideológico em diversas frentes e é objeto de estudo acadêmico há anos por universidades do mundo todo. No Brasil, o Museu dos Memes da Universidade Federal Fluminense tem um acervo respeitável e desenvolve pesquisas importantes sobre o tema nas áreas de comunicação, linguística, filosofia, sociologia, entre outras muitas áreas envolvidas na cultura digital (o repositório de produções do Museu de Memes pode ser acessado aqui ).

E divagando sobre o que memes representam e apresentam com seus conteúdos, resolvi fazer um exercício imaginativo. Na verdade, resolvi pensar em uma aula contextualizada sobre a imagem abaixo. Ela é um dos exemplos que a internet brasileira possui – inclusive existem perfis brasileiros especializados em produzir e replicar memes sobre temas científicos, como o @memeinteligente (com mais de 600 mil seguidores) e o @scientists.br (com pouco mais de 190 mil seguidores no Instagram). O acervo é imenso e abrange todas as áreas do conhecimento científico, de Aristóteles ao Einstein, de Foucault a Darwin.

Reprodução

Além da clara conclusão que se poderia obter discutindo o contexto do meme acima – a distinção conceitual entre massa e peso – dá para ir um pouquinho além. Por exemplo, discutindo a própria origem da cena (se você ainda não sabe, Bob Esponja se passa numa encantadora cidade chamada Fenda do Biquini, que possivelmente seja uma referência a região de testes nucleares conduzidos pelos Estados Unidos no Atol de Bikini ). Aqui, já abrimos um espaço para discutir a radioatividade, suas aplicações e efeitos ambientais e políticos ao longo da história humana. De quebra, dá para discutir como uma fêmea de esquilo caminha sobre duas patas e usa uma roupa de astronauta para sobreviver no fundo do oceano enquanto não está em sua cúpula pressurizada.

Claro que desenhos animados tem licença poética para produzir todo o tipo de encantamento. A questão não é necessariamente apontar incongruências, mas permitir que elas sejam investigadas, discutidas, contextualizadas no mundo. Não vemos esquilos com roupas de astronauta, mas se enviássemos um esquilo para o espaço, ele precisaria de uma? E aí traçamos os caminhos para a busca pelas possíveis respostas, que, em muitos momentos, passa por sites ou páginas com curiosidades duvidosas e invariavelmente incorretas sob o ponto de vista científico. Dá para usar também essas incorreções como ponto de partida para expor quais pontos estão errados numa visão estritamente científica, ao mesmo tempo em que se adverte sobre o perigo da informação errada, do click bait e do interesse por trás da propagação de notícias falsas.

E tudo isso está ao alcance de um telefone celular e uma conexão à internet. Ambientes em que partimos do pressuposto que seja de domínio amplo e irrestrito de nossos alunos, quando é a sua usabilidade que é dominada por eles (usabilidade é aquilo que permite que uma criança faça pedidos de comida usando o iFood dos pais ).

Mas você pode argumentar que memes podem ser rasos, de fácil interpretação. Que não são um fator assim tão grande para motivar discussões tão profundas em sala de aula. Então, mais uma proposta. Não é com um meme, mas o contexto pode ser muito mais amplo que nossa interpretação da imagem pode sugerir:

Caramujos são lentos ou répteis tem vida curta? | Autoria desconhecida.

Qual foi a velocidade média do caramujo para que o jacaré se decompusesse antes dele chegar ao seu focinho? Jacarés se alimentariam de um caramujo? Caramujos não se desviam de possíveis predadores? São três perguntas cuja resposta permite a busca por informações e de análise de fatos para que possa ser corretamente respondida!

Fixando nosso referencial (físicos tem mania de usar esse tipo de frase, não liguem) na primeira pergunta, teríamos que levantar alguns pontos para respondê-la. Sugiro alguns:

  • Qual a distância entre o caramujo e o jacaré?
  • Qual a velocidade média desenvolvida pela espécie de caramujo apresentada na figura?
  • Quais suposições devo fazer a respeito do movimento dos dois animais? Há movimento relativo de ambos?
  • Como identificar corretamente as espécies e obter informações detalhadas sobre elas?
  • Qual o tempo de vida de cada espécime mostrado na figura?

Em certa medida, quando permitimos que alunos tenham contato com esse tipo de atividade, permitimos que eles vivenciem etapas importantes do trabalho de investigação de um cientista. Cientistas buscam respostas para perguntas o tempo todo. E os caminhos que podem levar a solucionar a uma ou mais perguntas nem sempre estão prontos ou são completamente conhecidos. Daí que discutir ciências não se resume a expressar uma característica matemática de algum fenômeno. É principalmente discutir quais caminhos levam e amparam o resultado obtido.

Pode ser com um meme, uma charge ou com um problema de relevância mundial. Se desejamos que as pessoas defendam a ciência, é preciso que elas compreendam como ela se desenvolve e afeta suas vidas. Afinal, meme forçado não tem graça.

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Para saber mais:

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