CCULT LIVROS #15 – Universo Elétrico

Shares

Crianças de todo o mundo se encantam com o fato de canetas atritadas em seus cabelos passarem a ter a capacidade de atrair pequenos pedaços de papel. Convivemos com esse fenômeno desde pelo menos a Grécia Antiga — lá, a caneta era substituída pelo âmbar atritado em pedaços de lã —, mas levamos um bom tempo para compreendê-lo em detalhes. Daí que em nosso cotidiano, nos relacionamos o tempo todo com fenômenos elétricos: desde a nossa fisiologia, passando pelos equipamentos que tornam a nossa vida o que ela é, até os mais fenômenos naturais, como as descargas elétricas. Tudo passa pela eletricidade.

Ao que parece, infelizmente, temos cada vez menos consciência disso. O uso da eletricidade está tão enraizado em nosso cotidiano que pouco paramos para pensar em como tudo isso foi possível. Em como chegamos até aqui. Não me refiro ao funcionamento de cada parte dessa engrenagem tecnológica em que apoiamos a nossa existência, mas sim, a como foram os caminhos para que pudéssemos sair de simples demonstrações com âmbar e lã para uma das mais fundamentais coisas de nosso tempo: a energia elétrica.

Evidentemente, não foram caminhos óbvios nem desprovidos de insucessos, de dramas, competições e, principalmente, busca por respostas. O que penso ser encantador na história da eletricidade é que as perguntas e as inquietações que nos trouxeram até aqui são as mesmas que a curiosidade infantil poderiam ter. A pergunta fundamental é — perdoem o trocadilho infame — o fio condutor do desenvolvimento científico e tecnológico sobre o tema: por quê?

E é justamente isso que o livro “Universo elétrico: a impressionante história da eletricidade” escrito por David Bodanis e lançado no Brasil pela Editora Record (2008, 291 páginas, com tradução de Paulo Cesar Castanheira e revisão técnica de Alexandre Tort) apresenta ao leitor: os principais avanços na área do estudo da eletricidade e as razões que fizeram destes avanços um marco para a ciência e para a mudança na vida em sociedade, desde produção de energia elétrica e os primeiros dispositivos elétricos, como as lâmpadas, até as comunicações e a compreensão do papel da eletricidade na fisiologia humana. Ao todo, a obra conta com doze capítulos distribuídos em cinco partes, além do epílogo, notas e um guia de leitura complementar que funciona como uma apresentação das fontes de cada capítulo.

Reprodução.

Bodanis foca a sua escrita a partir dos estudos no século XIX relacionados com a eletricidade. A escolha parece arbitrária, mas é compreensível: foi no fim do século anterior que Alessandro Volta havia desenvolvido a sua pilha e dado origem a diversos estudos de aplicação da eletricidade na compreensão da fisiologia animal. Levando em conta todo o desenvolvimento que se sucedeu desde então, ter um recorte histórico de dois séculos é até justo diante da quantidade de informações, personagens e “descobertas” realizadas desde então.

O texto é muito, muito fluido, com informações detalhadas (ou referenciadas no guia de leitura) e discute pontos biográficos e produções intelectuais tanto de personagens não muito conhecidos do público em geral quanto daqueles mais famosos, como Thomas Edison, Nikola Tesla e Samuel Morse. Por falar em Morse, Bodanis dedica uma parte importante para discutir as motivações e a vida do inventor do famoso código que é batizado com o seu nome e como o uso do tal “código Morse” foi fundamental para a rapidez nas comunicações e, principalmente, para o aumento no ganho financeiro de Morse.

Este é um ponto alto do livro: conseguir mesclar os principais personagens relacionados com o estudo da eletricidade sem cair em curiosidades vazias e sem tentar trazer a relevância de cada um. Isso inclui casos de injustiças históricas no reconhecimento do desenvolvimento de tecnologias relacionadas com a eletricidade e o evidente interesse econômico por trás delas. Havia a percepção de que desenvolver equipamentos baseados no uso da energia elétrica era uma mina de ouro — e quem conseguiu êxito, se deu relativamente bem em termos financeiros. O que, evidentemente, não foi a sorte de todos aqueles apresentados no livro.

Outro ponto positivo da obra de Bodanis está na distribuição dos capítulos e na ordem dos temas propostos. A organização cronológica me permitiu um panorama compreensível do “de onde saímos” (com fios, telégrafos e lâmpadas incandescentes) para uma espécie de “onde estamos” (com a ausência de fios, aplicações da eletricidade na compreensão do funcionamento do cérebro, entre outras coisas). Desta forma, compreender a importância do desenvolvimento do radar (e dos trabalhos de Hertz que permitiram tal desenvolvimento) e a grandiosidade do trabalho de Turing e a fundamental invenção do transistor fica não apenas mais fácil como permite ao leitor se situar no contexto de cada uma delas. Ao final, perceber a evolução histórica da compreensão da eletricidade e, principalmente, das tecnologias associadas a ela é também perceber que nem sempre os caminhos em ciência e tecnologia são lineares e muito menos individuais.

Contudo, o livro não discute com a mesma profundidade o impacto que tais desenvolvimentos tecnológicos teve em outras partes do mundo, mesmo se levarmos em conta tecnologias desenvolvidas no fim do século XX. É até compreensível que o foco da obra esteja nos Estados Unidos e nos países mais desenvolvidos do continente europeu; afinal, boa parte do desenvolvimento tecnológico ocorrido no recorte histórico adotado pelo autor aconteceu nessas regiões. Mas é preciso que tenhamos um olhar crítico que nos permita refletir que a ciência não é praticada apenas nessas duas regiões do planeta, certo?

Outro ponto em que é preciso ficar atento sobre o livro é o seguinte: embora o título do livro faça menção a história da eletricidade, há um profundo contexto do desenvolvimento tecnológico associado. Em outras palavras: não espere demonstrações matemáticas ou discussões conceituais profundas sobre as grandezas associadas ao estudo da eletricidade. As equações de Maxwell, elétrons, corrente elétrica, indução eletromagnética: elas aparecem e são corretamente descritas ao longo do texto. Mas o enfoque está nas aplicações — e algumas implicações — que essas descobertas tiveram para a sociedade.

No geral, o texto é muito mais do que satisfatório. Alguns capítulos poderiam ser tratados tranquilamente como leitura introdutória sobre o estudo da eletricidade em uma disciplina de ciências da natureza, inclusive no ensino médio. É uma leitura interessantíssima para contextualizar como a eletricidade é parte fundamental de nossas vidas — muito além de nossa fisiologia.

O livro Universo Elétrico: a impressionante história da eletricidade, de autoria de David Bodanis e com tradução de Paulo Cezar Castanheira, está disponível em formato impresso em papel off-white 80 g/m².

. . . . .

Shares

Mais do ccult.org

Eu queria que isso fosse uma brincadeira, Sr. Feynman!

Richard Philips Feynman (1918 – 1988) foi um dos maiores físicos americanos da história . Participou ativamente do Projeto Manhattan …

A Santa Tracker (ou como é rápido o Papai Noel!)

No século XX, a humanidade testemunhou avanços científicos e tecnológicos que mudaram definitivamente a forma como a nossa civilização interage, …

CCULT LIVROS #1: “Aulas de Marie Curie”

Marie Skłodowska-Curie (1867-1934) é uma das cientistas mais conhecidas de todos os tempos. Sua história pessoal é suficientemente rica para …

Exploração espacial para crianças

Tudo começou com um chocolate surpresa. Talvez você não tenha idade para lembrar, mas nos tempos em que as barras …

Visualização de dados inspiradas por inteligência artificial

Algoritmos que utilizam inteligência artificial estão cada vez mais presentes em nossas vidas. Isso, claro, não significa que a IA …

Um café para o ccult.org

Em fevereiro de 2023, o ccult.org completará quatro anos de existência.  Quatro anos ininterruptos de um projeto que começou como …