CCULT LIVROS #7 – Tempestade numa xícara de chá

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Muitas interpretações são possíveis quando falamos em “divulgar a ciência”. Afinal, quando falamos em divulgação científica, o que estamos falando? De divulgar o conhecimento científico, apenas reportando o que de mais importante é discutido dentro da ciência? Ou apresentamos e reescrevemos a linguagem científica para facilitar a compreensão do que a ciência faz e produz? Ou ainda, quando divulgamos ciência, devemos nos preocupar em unir os dois primeiros objetivos com um terceiro, que é apresentar uma visão crítica do desenvolvimento científico ao mesmo tempo em que ele é contextualizado com o dia a dia do seu público? [1]

O que talvez seja um caminho perigoso para a divulgação científica é se perceber como substituta do ensino de ciências. O ensino de ciências possui objetivos que tangem em muitos pontos a divulgação científica, mas a coincidência de pontos não significa uma substituição imediata – para ambos os lados, inclusive. Educadores licenciados em suas respectivas áreas do conhecimento podem ter muito a contribuir com a divulgação do conhecimento cientifico, ao mesmo tempo que os materiais produzidos por divulgadores científicos podem contribuir – e muito! – com o ensino das ciências.

Ter isso em mente permite ampliar os horizontes sobre esses dois caminhos que permitem a sociedade aprender, conhecer e tomar para si a prática e o conhecimento científico, ainda que de forma gradual. E permite também compreender os limites que uma aula de ciências da natureza em forma de livro chamada “Tempestade numa xícara de chá: a física do dia a dia”, escrito pela oceanógrafa e física Helen Czerski e publicado no Brasil pela Editora Record (2018, 348 p.) possui.

A obra, dividida em nove capítulos, além da introdução, referências e índice remissivo, é impressa em papel off-white. As folhas são amareladas e possuem uma textura que lembra a aspereza de uma folha de jornal, só que mais grossa. Não senti problemas ao ler essa edição com a luminosidade artificial. Não há gravuras ou esquemas no livro, o que pode ser um diferencial para quem prefere a experiência do livro digital, mas não gosta – como eu – de visualizar figuras em ereaders, como o Kindle ou o Kobo.

A epígrafe do livro, apesar de curta, é profunda e dá uma amostra de como a autora lida com os pequenos pontos que relacionam fenômenos e tecnologias. A pergunta de sua avó, sobre o que Helen faria quando tivesse aprendido sobre os átomos que tanto estudava, é talvez uma das perguntas fundamentais da filosofia. E como a autora destaca, essa é uma ótima pergunta. O que fazer com aquilo que sabemos? Talvez parte da resposta possa ser dada do mesmo jeito com que Helen retrata o diálogo com a sua avó: com leveza, humor e a clara demonstração de que a curiosidade não vai terminar com uma pergunta respondida.

Talvez alguém torça o nariz quando se deparar com a informação sobre a ausência de figuras em um livro sobre física. Mas, acredite: a forma como Czerski constrói o texto permite fazer ligações perfeitas entre coisas simples, como o estouro dos milhos de pipoca e o funcionamento dos foguetes espaciais: o elo, as leis dos gases, é apresentada e contextualizada de uma forma tão espetacularmente simples que até é possível compreender como uma baleia cachalote consegue descer a mais de trinta metros de profundidade para se alimentar e ainda manter o seu corpo inteiro – já que a essa profundidade, a pressão atmosférica sobre o corpo do animal é imensa, mas tem os seus efeitos minimizados com a contração dos órgãos respiratórios do animal, associado ao consumo das reservas de oxigênio em seu sangue e músculos. O resultado é que uma baleia consegue evitar o mal da descompressão graças a sua anatomia e a beleza disso tudo reside também em saber que as leis que nos permitem compreender o mecanismo de sobrevivência das cachalotes sob o oceano são as mesmas empregadas no voo dos foguetes e no estouro das pipocas.

Cada conexão discutida dentro do tema principal dos capítulos é também uma aula de interdisciplinaridade. Ainda no primeiro capítulo – o mesmo em que são discutidas as leis dos gases com pipocas, baleias e foguetes -, a autora apresenta a sua experiência em aprender a fazer pães. Desde o contexto de sua aula até a sua reação com o crescimento da massa, Helen discute de forma leve e descontraída como amassar a massa e coloca-las para descansar contribui para o seu crescimento ao ser assada, graças a reação química entre o fermento, o ar armazenado em cada sovada e o calor emitido pelo forno e absorvido pela massa e faz o pão crescer ao mesmo tempo em que é cozido. Tudo acontecendo sob os olhos da estatística das colisões moleculares que ocorrem a incríveis 350 – podendo chegar a 500 – metros por segundo! Matemática, química, física e biologia de um pão associadas ao lançamento de foguetes. [3]

E nisso reside todo o disclaimer que apresentei no começo do texto: embora seja uma aula de física, o livro não pretende ensinar os conceitos da disciplina. Ainda assim, o livro pode ser uma boa ferramenta de ensino. E por quê? Helen tem um trunfo que é difícil de ser perseguido e mantido durante aulas convencionais: manter a constante contextualização com situações do cotidiano ou com tecnologias que são amplamente conhecidas e até utilizadas. Todos nós temos acesso a geladeiras, fogões e liquidificadores, ao mesmo tempo em que todos já ouvimos falar no telescópio espacial Hubble, em ondas de rádio e até nas mudanças de estado físico das substâncias. Mas poucos conseguem traçar paralelos tão bem articulados quanto os que Czerski traça em seu livro. Apresentar as bases de sua pesquisa em oceanografia discutindo de forma clara como as bolhas se formam nos líquidos graças a viscosidade e explicar como essa viscosidade é contribui para a formação da nata no leite e até para o diagnóstico da tuberculose é algo que apenas bons autores de divulgação científica – e bons professores de ciências da natureza – conseguiram fazer. Todos, de educadores a divulgadores, de alunos a sociedade em geral, só tem a ganhar quando uma obra como “Tempestade numa xícara de chá” consegue ser utilizada no contexto de divulgação e de educação cientifica.

Por isso, diria que esse livro de Helen Czerski, “Tempestade numa xícara de chá” poderia muito bem ser item obrigatório nas bibliotecas escolares e na coleção privada de professores de disciplinas das ciências da natureza. As inúmeras conexões que Helen consegue traçar abrem um leque de possibilidades para o uso dos textos do livro em sala de aula, seja como parte da discussão conceitual, seja como parte de um projeto ou atividade interdisciplinar. Experimente, por exemplo, apresentar a pergunta sobre como animais marinhos, como a baleia cachalote citada anteriormente, conseguem manter a sua respiração mesmo quando submersas. A coleção de perguntas que passa a surgir para tentar explicar este efeito é incrível e tende a motivar os alunos em busca da resposta. Aliás, já fizemos esse convite para a busca pela respostas [4] e o livro de Helen oferece um farto material para isso.

Se há um defeito no livro de Czerski, é o defeito de terminar. Não porque ele termina apresentando todas as respostas, mas sim, levantando ainda mais perguntas sobre o mundo que nos cerca. Como bem escreve a autora na introdução do livro: “a essência da ciência é experimentar com os princípios por si mesmo, levando em conta todas as evidências disponíveis para chegar às suas próprias conclusões”. Este livro é apenas o início. E que excelente começo!

O livro “Tempestade numa xícara de chá: a física do dia a dia” está disponível em formato impresso e digital nos principais marketplaces do Brasil e no site da Editora Record.

[1] Não existem respostas prontas para qual o modelo mais adequado de divulgação científica, isto é, qual deveria ser o modelo para que a divulgação da ciência seja a mais adequada, universal e compreensível possível. Contudo, o consenso aponta para duas coisas: menos sensacionalismo e mais correção conceitual (estou olhando para você, efeito Datena) e a adequação frente aos objetivos e o seu público alvo.
[2] Helen Czerski é física, oceanógrafa e apresentadora de TV. Para um perfil completo, consulte o seu verbete na Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Helen_Czerski
[3]Equivalentes a velocidades de 1260 km/h e de 1800 km/h, respectivamente!
[4] Leia na íntegra em: https://ccult.org/e-se-buscassemos-as-perguntas/

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