Reprodução – Acervo pessoal
Existem histórias que envolvem o Brasil que encantam, revoltam e automaticamente implicam em reflexões sobre o atual estado das coisas.
Uma dessas histórias é descrita com detalhes no livro “Catorze Camelos Para o Ceará: a história da primeira expedição científica brasileira” (Todavia, 2021, 228 páginas). A obra escrita pelo jornalista Delmo Moreira é dividida em 28 capítulos que conseguem apresentar detalhes técnicos e, principalmente, sentimentos, conflitos e as relações sociais e políticas que permearam os caminhos da primeira expedição científica brasileira financiada por dinheiro público e que tentou entender diversas características de nosso território – e de nossa gente também.
Em uma primeira ideia, alguém poderia pensar que o grande atrativo da obra – e confesso que minha primeira curiosidade com o livro foi justamente essa: por que trariam camelos para o Brasil? – seria a chegada dos catorze camelos vindos da Argélia para auxiliar os cientistas membros de uma expedição científica no nordeste brasileiro (Dalmo explica o contexto da compra e da chegada dos camelos logo no prólogo do livro). Mas este livro é muito mais do que a história sobre camelos em território brasileiro: é um livro sobre como questões políticas e sociais influenciam a ciência e os cientistas sob diversos aspectos.
Diversos exemplos poderiam ser apontados sobre essas influências – eles se mostram presentes em toda obra -, mas talvez o maior deles seja justamente o contexto que dá motiva a existência desta expedição: mostrar que cientistas brasileiros poderiam – e deveriam – produzir a própria ciência, seus próprios conhecimentos acerca do território brasileiro. Até a chegada dos ditos camelos, em 1859, diversas expedições estrangeiras haviam desbravado importantes regiões brasileiras, descobrindo novas espécies vegetais e animais, realizando medições astronômicas e colhendo amostras geológicas e, principalmente, levando consigo este conhecimento para seus países de origem, sem qualquer contrapartida ou compromisso ético com a população ou com o governo brasileiro. Essa é uma questão séria, que nos dias atuais, nos conduz aos mecanismos da biopirataria, da formação de acervos controversos e de interferências políticas e econômicas promovidas em nome da ciência – vide o caso do fóssil Ubirajara .
Um olhar muito interessante que o autor apresenta é a visão humana sobre os principais membros da expedição científica cuja concepção era defendida por cientistas brasileiros membros do então Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e tornada possível pelo empenho financeiro ao “Imperial Comissão Científica de Exploração das Províncias do Norte” – e aqui cabe reproduzir o destaque do autor: “a jovem monarquia tentava tomar pé de seu tempo”, em que missões científicas similares “cobiçava fazer ciência e descobrir riquezas”.
Desta forma, lideraram a missão científica Guilherme Schüch, o Barão de Capanema, formado em engenharia e mineralogia, o médico e botânico Freire Alemão e o etnólogo e poeta Gonçalves Dias). As relações destes com a população dos locais por onde as frentes de trabalho da expedição passava é descrita com os fatos e informações contextualizadas sobre a época. Nisso reside a reflexão não apenas sobre o lado humano que muitos desconsideram no trabalho científico – desde o apego a festas que incomodavam a vizinhança até as relações de cordialidade e de força com as autoridades políticas regionais -, mas de como lidar e superar as questões humanas requer paciência e um enorme jogo de cintura, especialmente quando recordamos que a expedição era a primeira financiada e conduzida totalmente com recursos brasileiros. Não tínhamos o conhecimento prático de como expedições científicas deveriam ser planejadas e executadas no mesmo nível que outras nações desenvolvidas e que invariavelmente aportavam suas missões científicas no Brasil.
As dificuldades operacionais e pessoais envolvidas com o desenvolvimento da expedição poderiam tornar os camelos meros figurantes dentro da história da primeira expedição científica brasileira. Mas eles não o são: os camelos simbolizam, ao mesmo tempo, uma esperança de fazer as coisas por si mesmo e a noção de que que nos pertence não nos serve. A introdução dos camelos em território brasileiro tinha objetivos exatamente assim – e no decorrer da leitura, isto fica muito bem evidenciado pelo texto do autor.
Mais do que apresentar uma história sobre um acontecimento brasileiro, o “Catorze Camelos Para o Ceará” nos traz reflexões importantíssimas sobre as consequências que as percepções políticas têm sobre a prática cientifica. E claro, sobre coisas que nos são incontroláveis ou imprevisíveis – e que permanecem existindo mesmo no contexto científico, e claro, mesmo nos dias atuais. Mais do que uma história encantadora sobre uma expedição científica – que acabou virando tema do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense -, o livro é documento de como a ciência lida diariamente com conflitos e interesses, projetos ousados e realizações. E que nada, dentro ou fora da ciência, é desenvolvido adequadamente sem apoio e sem estrutura contínuas. Isso é particularmente chocante quando o livro apresenta o que aconteceu com os dados e informações coletados e enviados durante os anos em que a expedição durou.
A edição traz imagens originais e diagramas que apresentam os roteiros seguidos pelas equipes da missão científica, entre outras informações. Mesmo na versão digital – que foi a versão lida para a produção deste texto -, as imagens e figuras eram legíveis, embora os detalhes ficassem melhor definidos na tela de um computador ou celular.
O livro “Catorze Camelos Para o Ceará: a história da primeira expedição científica brasileira ” pode ser adquirido junto à editora ou nos principais sites e livrarias brasileiras em ebook e em livro físico.
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F. C. Gonçalves é mestre em ciências pela Escola de Engenharia de Lorena (EEL-USP) desde 2019, além de licenciado em Física pela Universidade de Taubaté (Unitau) desde 2010, mesmo ano em que passou a atuar no ensino de Física nos níveis fundamental e médio. Como não sabe desenhar nem tocar nenhum instrumento musical, tampouco possui habilidades para construir qualquer tipo de artesanato, restou-lhe a escrita: “quando não sei o que dizer, escrevo”, diz. Desde criança é entusiasta do conhecimento científico. Da sede de querer conhecer mais sobre o mundo veio a paixão pela Astronomia. E quando menos percebeu, estava escrevendo e falando sobre o conhecimento científico para quem quisesse ler ou ouvir.
[…] [1] https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra%5B2%5D http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2569.pdf%5B3%5D https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23300-taxa-de-acesso-ao-nivel-superior-e-maior-entre-alunos-da-rede-privada%5B4%5D O livro “Uma herança incômoda”, de Nicholas Wade (Três Estrelas, 2016), discute a questão de raça e de genes e conclui com necessidade de se rechaçar a superioridade entre raças e de se combater o eugenismo.[5] A Informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada. Editora Companhia das Letras, 2013[6] Como pode ser conferido no livro “A medida do mundo: a busca por um sistema universal de pesos e medidas”, de Robert P. Crease (Editora Zahar, 2013).[7] Em entrevista, cuja íntegra pode ser conferida no link: https://www.ufjf.br/ladem/2016/07/01/talvez-o-proximo-einstein-esteja-morrendo-de-fome-na-etiopia-entrevista-com-o-astrofisico-neil-degrasse-tyson%5B8%5D Como pode ser lido a respeito do caso do fóssil Ubirajara: https://ccult.org/descolonizacao-de-fosseis-brasileiros-o-caso-ubirajara-e-algumas-notas-de-cultura-cientifica%5B9%5D Cuja história é descrita no livro “Catorze Camelos para o Ceará”: https://ccult.org/catorze-camelos-para-o-ceara […]