A cargo cult science nossa de cada dia

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Um dos termos mais conhecidos de nosso tempo é a pós-verdade. Oriunda de uma das premissas da prática jornalística, a checagem de fatos é, em essência, uma investigação de caráter científico que busca analisar afirmações com base em acontecimentos, dados e informações coletadas em órgãos oficiais ou em institutos de grande credibilidade. Portanto, a era da pós-verdade surgiu em uma situação paradoxal, visto que estamos na era da ciência e da tecnologia. Nossas relações sociais, afetivas, profissionais estão, em grande parte, ancoradas em aplicações tecnológicas desenvolvidas ou criadas a partir de descobertas científicas.

Era de se esperar que nosso tempo fosse notabilizado por discussões racionais e avanços tecnológicos sem precedentes; mas na verdade, o que vemos é um sem número de produtos que se vendem como revolucionários tratamentos de doenças ou que propõem o emagrecimento rápido sem esforço ou que se anunciam como a melhor tecnologia jamais inventada pelo Homem em termos de comunicação, transmissão de dados, registro de imagens.

A maneira mais fácil de explicar essa ideia é contrastá-la, por exemplo, com a publicidade. Ontem à noite eu ouvi que o óleo de Wesson não embebe com o alimento. Bem, isso é verdade. Não é desonesto; mas a coisa que eu estou falando não é apenas uma questão de não ser desonesto, é uma questão de integridade científica, que é outro nível. O fato de que deve ser adicionado a essa declaração de publicidade é que nenhum óleo embeber através de alimentos, se operado a uma determinada temperatura. Se operado em outra temperatura, todos eles vão — incluindo Wesson Oil. Portanto, é a implicação que foi transmitida, não o fato, que é verdade, e a diferença é o que temos de lidar. — Feynman, em discurso de formatura em 1974

O fato é que há uma predileção para se usar tudo aquilo que se apresenta como científico pois o que é científico, de acordo com a nossa cultura, tem credibilidade. Afinal, o esteriótipo comum do cientista é aquele que descreve o cidadão que sabe tudo sobre os assuntos com os quais pesquisa e sempre será capaz de dar opiniões e pareceres baseados na racionalidade e no conhecimento que possui.

Em suma, nosso tempo apresenta um culto ao que parece científico, mas que não o é justamente por faltar o que é essencial ao trabalho do cientista: o uso do método científico para chegar as conclusões que defende. Esse tipo de prática foi batizada por Richard Feynman como cargo cult science.  É verdade que a discussão a respeito do uso e da aplicabilidade do método científico (ou de suas etapas) movimenta a filosofia da ciência — há epistemólogos, como Mario Bounge, que adota uma relação de critérios para, de fato, definir se uma prática é ou não cientifica. Mas essa é uma discussão para outro texto.

Quando Feynman se propôs a explicar o significado da cargo cult science, ele utilizou o exemplo das tribos habitantes de ilhas distantes que, ao se depararem com as tecnologias trazidas por americanos e alemães durante a segunda guerra, tentavam reproduzi-las como se o meio material fosse a razão do funcionamento e da existência delas. O caso mais famoso, relatado nesse texto de Brennan Letkeman mostra como habitantes das ilhas de Vonatu, na Austrália, construíram torres e aviões com bambus à espera do retorno das aeronaves americanas que lhes traziam comida e as incríveis tecnologias que jamais poderiam imaginar.

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.” — Arthur C. Clark

Esse comportamento quase de “culto à magia” que as tecnologias causam é, em essência, fruto do desconhecimento acerca do funcionamento e da aplicabilidade — e das consequências — que a ciência tem em nosso tempo. Uma empresa que vende uma tecnologia que, em princípio, é capaz de aumentar o rendimento desportivo ou intelectual de quem a usa deveria, em tese, comprovar aquilo que diz a partir de uma séria e independente investigação científica. Na prática, milhões de dólares são empregados em publicidade — que parece ser mais convincente do que os resultados científicos em torno da eficácia (inexistente) do produto.  Nesse mesmo sentido, surgem os milagrosos comprimidos energéticos que combatem a fadiga e o cansaço desintoxicando o corpo de substâncias que, a princípio, são eliminadas pelo próprio organismo de forma natural.

Mas não é apenas na compra de aplicações tecnologias que a cargo cult aparece. O nosso comportamento diante das informações reflete essencialmente o desconhecimento sobre a prática científica e se assemelha com a reprodução material do resultado do conhecimento — e não com a sua produção em si. Por exemplo: em quantas situações você simplesmente se apoiou na opinião ou na informação que lhe parecia confiável ao invés de checá-la por si só? Não falo apenas de informações duvidosas dadas por governantes, mas também de afirmações dadas por vizinhos e familiares que poderiam até ter um fundo científico, mas que não eram científicas em sua essência — como, por exemplo, a sugestão para o uso de um medicamento que supostamente melhorou algum sintoma em uma situação genérica em outra pessoa.

O fato de não fazermos uma investigação mais próxima à investigação de caráter científico é, a meu ver, uma das razões pelas quais a checagem de fatos tornou-se primordial em tempos de acesso à informação. Enquanto o nosso ensino de ciências não se atentar para a questão da manipulação de informação, criaremos gerações que simplesmente serão capazes de contestar uma informação ou, quando muito, de repeti-la porque a informação dada lhe parece correta. Esse texto do Filipe Oliveira aborda muito bem a questão do ensino e da pós-verdade  (que, em grande medida, é parte de nossa incapacidade de simplesmente investigar e de filtrar informações que nos chegam a todo instante).

O perigo de nossos tempo não é a falta de informação, mas a nossa incapacidade em lidar com elas

Mais do que ser incapaz de investigar informações e de criar situações que apenas repetem a aplicação do conhecimento científico — como reproduzir torres de rádio usando bambu ou comprando aparelhos eletrônicos apenas porque a geração atual apresenta alguns números superiores à geração anterior (que na prática não significam nada) — traz consigo um perigo, especialmente para a nossa época atual de enxurrada de informações: depender de serviços que nos dizem o que é ou não verdadeiro pode, a critério de quem o faz, transformar mentiras em verdades e vice-versa. Afinal, se você não conhece os métodos de investigação científica e nem detém o mínimo de informações a respeito, como poderá pensar se os astronautas usam mesmo os aqueles travesseiros que não se deformam?

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