O pitch drop e outras raridades da vida

Desde quando li “Paratii: entre dois polos” (Companhia das Letras, 1992, 264 páginas) tenho pensado em coisas que não se repetem (e em como se comportar diante delas). Ao narrar a sua estadia na Antártica, Amyr Klink, entre outras passagens incríveis sobre a rotina e o clima local, contou sobre quando avistou cristais de gelo sobre as estruturas de seu barco e, pensando que teria mais outros dias de estadia no continente, não fez o registro fotográfico daquela paisagem inédita — que, segundo o seu próprio relato, nunca mais se repetiu.

Diversos fenômenos naturais têm essa característica avessa às repetições. Popularmente conhecida como “cacto-orquídea”, a Epiphyllum oxypetalum é conhecida por ter uma única floração ao longo de sua existência. Cometas nos “visitam” de tempos em tempos e alguns podem tranquilamente orbitar o nosso planeta do intervalo de uma vida humana (o que faz com que muita gente não consiga observá-los em toda a sua vida). Planetas como Urano e Netuno levam mais tempo para completar uma volta ao redor do Sol do que o tempo médio de existência de uma pessoa.   

Não se repetir não é, necessariamente, um problema para a ciência: a questão é como desenvolver métodos de pesquisa que permitam o estudo, a coleta de dados, a verificação de hipóteses [1] e a reprodutibilidade do que está em estudo. Aqui é necessário muito estudo — e muita criatividade — para que tudo possa ocorrer de forma a conseguir o consenso de cientistas e, ao menos, melhorar o conhecimento que a ciência tem sobre um determinado tema.

E o que tudo isso tem a ver com fenômenos raros, duração da vida humana e ciência? Bem, a questão é uma gota. Não uma gota qualquer: trata-se da “pitch drop”, experimento demonstrativo mais longo da história (com reconhecimento do Guiness Book e tudo) e que ainda está em desenvolvimento neste exato momento. A proposta veio ao mundo em 1927 pelas mãos de Thomas Parnell, o primeiro professor de Física da Queensland University, na Austrália, mas se concretizou apenas em outubro de 1930. Parnell desejava demonstrar o quão viscoso é o breu, um fluido com propriedades semelhantes às do piche e utilizado na impermeabilização de barcos.

A viscosidade é a propriedade que fluidos tem em resistir à deformação. Por conta das forças intramoleculares em um fluido, quanto maior a viscosidade, maior é a força entre as moléculas. Compreender a viscosidade dos líquidos ainda é uma tarefa complexa e você pode obter mais detalhes sobre as condições de estudo e as definições aplicadas aos fluidos (e as suas viscosidades) neste texto de Éliton Fontana [2].

No experimento australiano, uma amostra do fluido foi posta em uma espécie de funil com a ponta fechada. Após resfriar por três anos, a ponta foi finalmente aberta e o breu pode escorrer livremente. O que não significou que o fluido caiu toda de uma vez. Muito pelo contrário: desde então, apenas nove gotas se formaram e caíram do funil.

O experimento de queda de pitch fica no prédio de física da Universidade de Queensland, que recebeu o nome de Thomas Parnell. | Imagem: David Kelly/The Guardian

Todo o conjunto está dentro de um cubo de plástico protetor, com um relógio de mesa analógico Casio. O funil é mantido no alto por um tripé de latão; na parte inferior, um balão preto brilhante de breu paira acima do copo vazio.

A viscosidade do fluido no experimento de Queensland foi avaliada em um artigo de 1984 [3] como sendo de 2,3×108 Pas (pascal-segundo) e foi revista para 2,7 x 107 Pas (pascal-segundo), o que aponta uma viscosidade de, no mínimo, 30 bilhões de vezes a viscosidade de água! [4]

Embora com caráter demonstrativo, o experimento apresenta desafios interessantes. Um deles é manter a sua construção original em bom estado, já que ele não é realizado sob rígidas condições de controle (a viscosidade depende da temperatura e essa não foi uma variável mantida fixa ao longo da história da pitch drop, o que incluiu a instalação de um sistema de ar-condicionado na sala onde o dispositivo estava instalado). O outro é prever quando a décima gota finalmente cairá. As estimativas dão conta que a décima gota deve finalmente cair em algum momento da década de 2020. O algum momento se justifica: é um processo muito, muito lento. Literalmente mais lento do que a deriva continental da Oceania.

Após a sexta queda de arremesso caiu em 1979. Universidade de Queensland. | Reprodução.

A queda das gotas breu é tão lenta que o seu propositor não viu a primeira gota cair. Aliás, ela levou oito anos para sair da ponta do funil e atingir o anteparo abaixo dele. Outros cientistas nos anos seguintes também não tiveram melhor sorte, mas não por terem morrido no decorrer do experimento: John Mainstone, em 1979, ficou um final de semana inteiro em vigília para finalmente ver uma das gotas caindo. Vencido pelo cansaço, foi para a sua casa pretendendo voltar ao laboratório na manhã de segunda-feira. Quando voltou, a gota finalmente havia caído, longe do testemunho de Mainstone.

Professor John Mainstone com a oitava gota se formando em 1990. Universidade de Queensland.

Mesmo com tecnologias mais modernas, que permitem filmar o experimento em alta definição, não é simples captar o momento em que a gota cai: em 2014, a gota de número 8 escorreu e fez um pouso suave no recipiente, o que fez com que os cientistas do departamento de Física da Queensland University tivessem que recorrer à modelagem matemática para verificar quando a gota efetivamente caiu (é por essas e outras que a matemática é utilizada em ciências como a Física).

A queda da nona gota, em 2014, não foi observada. A partir dos dados de escoamento, tentou se estabelecer quando ela ocorreu — provavelmente em 12 de abril daquele ano. | Andrew Stephenson, Universidade de Queensland

O experimento de Pitch Drop permite não só pensar nos limites do desenvolvimento do conhecimento científico, como também é uma porta aberta para destacar como o conhecimento científico tenta explicar a realidade com a maior precisão possível. Embora seja possível prever a data da queda da próxima gota, a previsão pode errar — o que não significa, de maneira alguma, que o conhecimento científico sobre o tema estava totalmente incorreto. A ciência se ajusta à Natureza, não o contrário.

Ah, você também pode acompanhar a queda da décima gota, em tempo real, pelo site da The Queensland University. Basta clicar aqui e… Esperar.

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[1] As hipóteses, como já discutido neste texto são respostas provisórias que surgem como ponto de partida de um estudo científico que leva em conta o caráter popperiano do conhecimento científico. Para Popper, apenas estudos cujas hipóteses poderiam ser falseadas podem ser consideradas científicas (o que delimitou a definição de ciência e tratou muitos campos como pseudociências). Nem todos os estudos validados por cientistas levam em conta a visão popperiana de ciência — o que não os tornam “não-científicos”, evidentemente.
[2] FONTANA, Éliton. Determinação da Viscosidade de Fluidos Newtonianos. Disponível em: https://fontana.paginas.ufsc.br/files/2018/08/viscosimetros_newtoniano.pdf.
[3] R. EdgeworthB. J. DaltonB. J. DaltonT. Parnell. The pitch drop experiment. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1088/0143-0807/5/4/003.
[4] A viscosidade máxima, observada no artigo de 1984, resulta em um valor 250 bilhões de vezes da viscosidade da água, que é da ordem de 1,002 mPas a 20,0°C.

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Para saber mais:

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